Bollingen,
13 de janeiro de 1949.
13 de janeiro de 1949.
"Prezado doutor,
Antes de mais
nada, o senhor deve considerar que não costumo interferir nos trabalhos de meus
alunos. Não tenho o direito nem o poder de fazê-lo. Eles podem tirar as
conclusões que lhe pareçam corretas e devem assumir toda a responsabilidade por
elas. Já são muitos os alunos meus que fabricaram todo tipo de bobagem a partir
do que outrora aprenderam. Eu não disse em lugar nenhum que apoiava
"irrestritamente" Neumann (Dr. Jürg Fierz havia escrito a Jung sobre
o livro de Erich Neumann - Psicologia Profunda e Nova Ética, muito discutido na
época). Sobre isso não há o que falar. Eu naturalmente faço as minhas
restrições.
Se o senhor
quiser entender Neumann corretamente, deve considerar que ele escreve no vácuo
espiritual de Tel Aviv. De lá nada mais pode provir do que um monólogo. Ele
escreve como ele supõe. Não há dúvida de que isto é provocativo, mas eu já
percebi que os livros provocativos não são os piores. Eles irritam certas
pessoas que não poderiam ser atingidas de outro modo.
Se alguém
quiser saber o que eu penso dessas coisas, aí estão os meus livros, e cada qual
é livre para ouvir os meus pontos de vista. Alguém poderia ler os meus livros
em vez de alterar-se contra Neumann. Se eu recomendo o livrinho dele é
sobretudo porque ele mostra a que conclusões podemos chegar quando levamos a
extremos o nosso raciocínio sobre os problemas éticos. Devemos lembrar-nos
também de que Neumann é judeu e por isso conhece o cristianismo a partir de
fora; e além do mais é preciso saber que foi demonstrado aos judeus de modo
muito drástico que o mal "sempre é projetado". De resto - no que diz
respeito à confissão de pecados - é um fato que, se uma pessoa não considera
alguma coisa como sendo pecado, também não precisa confessá-lo. Quando Neumann
recomenda a "voz interior", e não a consciência cristã, como critério
do ético, ele está de pleno acordo com o ponto de vista oriental de que no
coração de cada pessoa mora um juiz que conhece todos os maus pensamentos dela.
E sob esse aspecto ele também pode contar com muitos místicos cristãos. Se
doentes mentais afirmam o mesmo, assim foi desde sempre, é preciso saber apenas
que as vozes dos doentes mentais são algo diferente daquilo que Neumann designa
como "voz interior". Muitos doentes mentais arvoram-se em
"éticos por excelência", sem que Neumann os tenha estimulado para
tal. Não há justificativa externa para a voz interior, pela simples razão de
ninguém saber o que é bom e o que é mau. Seria terrivelmente simples se
pudéssemos proceder de acordo com o decálogo, ou conforme o código penal ou
conforme qualquer outro código moral. Todos os pecados ali catalogados são tão
obviamente sem sentido ou mórbidos que toda pessoa sensata reconhece logo sua
impropriedade. Numa decisão ética entram em jogo coisas bem mais complicadas,
isto é, conflitos de obrigações, a coisa mais diabólica já inventada e ao mesmo
tempo a coisa mais solitária que jamais foi permitida sonhar pelo mais
solitário de todos, o criador do universo. No conflito de obrigações, um código
diz assim, e outro diz assado, e a gente sabe tanto quanto sabia antes. O caso
é realmente este: o que para alguém é bom, para outro parece ruim. Imagine o
caso de uma mãe preocupadíssima que interfere em todas as coisas de seu filho,
com a solicitude mais desprendida, mas na verdade com efeito mortífero. É claro
que para a mãe é bom se o filho não faz isso ou não faz aquilo, mas para o
filho é simplesmente a ruína moral e física – portanto dificilmente uma coisa
boa.
O senhor tem
razão ao dizer que a ética individual de Neumann coloca exigências bem mais
difíceis do que a ética cristã. O único erro que Neumann comete aqui é de ordem
tática: ele diz em voz alta, imprudentemente, o que sempre foi verdadeiro.
Assim que a ética se arvora em absoluta, ela é uma catástrofe. Ela só pode ser
considerada relativa, assim como Neumann só pode ser entendido de modo
relativo, ou seja, como um judeu religioso de origem alemã e que vive em Tel
Aviv. Se alguém imagina que se pode simplesmente varrer do mundo certas
concepções, está redondamente enganado: Elas se baseiam em arquétipos de
difícil apreensão. Parece que Neumann nos oferece o escoadouro de uma operação
intelectual que ele tinha de realizar para si a fim de obter um novo fundamento
para sua ética. Como médico, está profundamente impressionado com o caos moral
e sente-se responsável no mais alto grau. Por causa dessa responsabilidade
procura colocar em ordem para si o problema ético, não para editar um decreto
absolutista, mas para explicar suas reflexões éticas, esperando naturalmente
fazê-lo também para o mundo ao seu redor.
Ao ler
semelhante livro, o senhor deve ter em mente também o mundo em que vivemos.
Talvez já saiba que o cristianismo hodierno está relativizado pelo simples fato
de a Igreja estar dividida em tantos e tantos milhões de católicos e tantos e
tantos milhões de protestantes, e que o bolchevismo domina desde Thüringen até
Vladivostok, e que existe além do mais um Oriente com bilhões de não-cristãos
que também têm suas concepções de mundo. E como este mundo é apenas um, estamos
diante da questão: o que fazer? Não podemos simplesmente fechar-nos em nossa
visão do mundo, mas devemos necessariamente encontrar uma posição a partir da
qual seja possível uma visão que dê um pequeno passo para além do cristianismo,
do budismo, etc.
Como cristão
o senhor deverá esforçar-se e tomar como preocupação diária lançar uma ponte sobre
o lamentável conflito na Igreja, através de uma posição mediadora. Não se pode
simplesmente ser protestante ou católico. Isto é muito pouco, pois em última
análise um é irmão do outro, e isto não pode ser eliminado do mundo por uma
simples declaração de invalidade de um ou de outro. Neumann estabelece uma
posição que é válida para cada um no sentido mais profundo. Se existe um fator
interno decisivo, então deve valer para todas as pessoas. A questão é apenas
esta: existe uma voz interior, isto é, uma determinação? Sem dúvida ela não
existe para talvez 99% da humanidade, assim como não existe para esta grande
maioria uma porção de coisa pelo simples fato de as ignorarem. Não existe, por
exemplo, uma higiene bem rudimentar que seria válida para mais de 90% da
humanidade, sem falar de um código moral correspondente. Se a decisão ética não
for, em última análise, algo inerente à natureza humana, então o caso é completamente
sem esperança, pois nenhum código de leis resistiu ao tempo. Subjetivamente
estou convencido plenamente da realidade do fator interno decisivo, e meu
trabalho prático com pacientes visa exclusivamente trazer este fator à
consciência. O que se pode aprender de códigos morais, de manuais de moral e de
códigos penais são conveniências que nenhuma pessoa inteligente há de
menosprezar. Para os conflitos de obrigações nenhum código jamais foi escrito,
mas é lá que realmente começa a questão ética. Somente ali é possível aprender
responsabilidade ética. O restante é resolvido pela adaptação e pelo mais comum
bom senso. Não considero ser um mérito moral quando alguém evita tudo aquilo
que chamamos normalmente de pecado. Valor ético recebem apenas aquelas decisões
que são tomadas em situação de suprema dúvida. Esta é a questão que queima a
alma de Neumann, e nisto ele conta com o meu apoio, não importando se isto
relativiza ou não a minha posição. Não sou nenhum oportunista, mas observo a
este respeito certas regras fundamentais que são éticas, e não utilitaristas.
Se eu tivesse
que escrever sobre ética, jamais me expressaria como Neumann. Mas também não
sou o Neumann que foi forçado por um destino cruel a uma contraposição
militante. Se, por acaso, propõe ao mundo uma dificuldade diante da qual tantas
pessoas têm de se atormentar, não me admira nem eu o levo a mal por isto.
Também não posso lamentar que os assim chamados cristãos sejam um pouco
atormentados. Eles bem que o merecem. Fala-se muito e sempre da moral cristã,
mas gostaria de ver aquele que a segue de verdade. Não se teve a mínima consideração
com Neumann, e muito menos amor ao próximo. Desejo apenas que os cristãos de
hoje reconheçam que aquilo que eles representam não é nenhum cristianismo, mas
uma infeliz religião legalista da qual o próprio fundador tentou libertá-los,
seguindo sua voz e sua vocação até o amargo fim. Se não tivesse feito isso,
também não teria existido nunca um cristianismo. É certo que a “comunidade” foi
magoada por este problema de ética individual, mas isto deve ser assim, pois a
pergunta de hoje é esta: comunidade de quem ou com quem? Não comunidade em si,
porque isto já sempre tivemos, e com que resultados: a comunidade do povo na
Alemanha e coisas semelhantes. Por isso está na hora de as pessoas refletirem
sobre como estão constituídas ou sobre como deve ser a constituição daquilo que
querem introduzir na comunidade. Uma coisa ruim não se torna melhor se
multiplicada por 10.000, nem 100 cafajestes somados formam uma pessoa decente.
Ao ler um
livro, gostaria de recomendar-lhe como regra que considerasse sempre quem é o
autor. Já devíamos ter aprendido que ideias expressas em palavras nunca
representam algo absoluto, e que somente pessoas acríticas fazem para si vestes
novas a partir de farrapos de ideias.
Saudações
cordiais, C. G. Jung”.
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