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Christian Stamm (Gächlingen – Schaffhausen)

“23 de abril de 1949.

Prezado senhor,
Muito obrigado por sua amável carta. Gostaria de responder às suas perguntas (1) do seguinte modo:
É melhor não querer afrouxar o inconsciente, mas “uma dose moderada, por ninguém será vedada” é um dito sacrossanto desde tempos imemorais. Vinho=filho da terra (Cristo, a videira, e Dioniso, o vinho, na Índia, soma).
Não sei como um cego sonha as mandalas. As mandalas também são moldadas pelas mãos, dançadas e representadas na música (por exemplo, A arte da fuga de Bach; morreu enquanto trabalhava nela).
Quando uma mandala é formada, tudo o que a pessoa conhece de redondo e quadrado atua junto também. Mas o impulso para essa conformação é dado pelo arquétipo inconsciente em si.
Todo ser vivo sonha com individuação, pois tudo procura sua própria totalidade. Isto nada tem a ver com raça e outras coisas. Existem sonhos típicos, mas não tipos oníricos, pois o inconsciente coletivo não é um tipo, mas contém tipos, isto é, os arquétipos.
O livro de Bunyan, Pilgrim’s Progress (2) é um livro de edificação religiosa que emprega sobretudo o simbolismo cristão. O símbolo do espelho refere-se a Paulo quando escreve: “No presente vemos por um espelho e obscuramente, então veremos face a face” (3). O simbolismo da montanha já se encontra nos vitorianos (4).
É totalmente que seu filho tivesse um sonho com mandala. Esses sonhos costumam ocorrer, e não raras vezes, entre os 4 e 6 anos de idade. A mandala é um arquétipo que sempre está presente, e as crianças que ainda não estão pervertidas têm uma visão mais clara das coisas divinas do que os adultos, cuja compreensão já está devastada. A mandala deveria ter 4 cores para ser completa. A razão da falta da terceira cor poderia estar no fato de ele já frequentar a escola ou ser filho de professor que tem um interesse instintivo na diferenciação das funções.
Hoje em dia os animais, dragões e outros seres vivos são substituídos preferentemente por ferrovias, locomotivas, motocicletas, aviões e outros produtos artificiais (assim como o céu de estrelas do hemisfério sul, descoberto tardiamente, contém sobretudo imagens náuticas). Aí se expressa o afastamento da mente moderna em relação à natureza; os animais perderam sua numinosidade; eles tornaram-se aparentemente inofensivos; em seu lugar povoamos o mundo com monstros uivantes, estrondeantes e tumultuantes que causam danos muito maiores do que os ursos e lobos de outrora. Quando faltam os perigos naturais, o ser humano não descansa enquanto não inventa outros iguais.
Saudações cordiais, C. G. Jung.
(1) O destinatário enviou uma lista de perguntas a Jung. Aquelas que não são de interesse especial, bem como as respostas de Jung, foram aqui omitidas.
O senhor considera como relativamente útil ou como desacerto o afrouxamento, ou outro nome que se queira dar, do inconsciente através da ingestão moderada de álcool ou de outro narcótico?
Como um cego de nascença sonha as mandalas?
Não poderiam as mandalas ser derivadas de fatores atuais: o redondo da pupila e projeção de uma busca geral de harmonia no espaço (geometria) e tempo (ritmo), ambos unidos por representações mecânicas?
Até que ponto os sonhos de individuação dependem de raça, tradição, caráter e experiência? Além dos tipos psicológicos existem também tipos oníricos?
O senhor conhece o livro de Bunyan, Pilgerreise, um sonho elaborado de forma literária? (A cidade brilhava tanto que só era possível contemplá-la através de espelhos que estavam ali para isso).
Meu garoto de seis anos sonhou que de repente o livro de gravuras não se abria mais de jeito nenhum e, no entanto, havia dentro dele uma figura linda, um anel e uma flor azul. Não é cedo demais para uma mandala?
Quando “deveria” sonhar com um cavalo, aparece na maioria das vezes uma motocicleta!

(2) John Bunyan, 1628-1688; sua obra principal é The Pilgrim’s Progress from This World to That Which is to Come, 1678-84.

(3) I Coríntios 13.12.

(4) A escola teológica de S. Vitor foi um lugar de fomento da teologia mística no século XII.

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