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Dorothy Thompson


To Dorothy Thompson (1)
Vermont/EUA
Dear Mrs. Thompson

23 de setembro de 1949

É um prazer receber a carta de uma pessoa inteligente e normal, em contraste com a enxurrada maldosa de insinuações idiotas e malévolas que eu aparentemente provoquei nos Estados Unidos. (2)
A senhora sabe que me preocupo tão profundamente quanto a senhora com a situação fora do comum e sinistra do mundo. (A propósito, li vários de seus comentários políticos e admirei sua inteligência prática e seu bom senso).
Eu poderia dizer muita coisa, do meu ponto de vista psicológico, sobre o dilema atual do mundo. Mas temo que isto levaria muito longe, adentrando o terreno das complicações psicológicas que precisariam de muitas explicações.
Tentarei ser simples. (3). Uma situação política é a manifestação de um problema psicológico paralelo em milhões de indivíduos. Este problema é em grande parte inconsciente (o que o torna particularmente perigoso). Consiste num conflito entre um ponto de vista consciente (ético, religioso, filosófico, social, político e psicológico) e um inconsciente, que se caracteriza pelos mesmos aspectos, mas é representado numa forma “inferior”, isto é, mais arcaica. Em vez da “alta” ética cristã, temos as leis de rebanho, repressão da responsabilidade individual e submissão ao chefe tribal (ética totalitária). Em vez da religião, credo supersticioso numa doutrina ou verdade ad hoc; em vez de filosofia, um sistema doutrinário primitivo que “racionaliza” os apetites do rebanho; em vez de uma organização social diferenciada, uma aglomeração caótica e sem sentido de indivíduos desenraizados, mantidos submissos pela força e pelo terror, cegados por mentiras convenientes; em vez do uso construtivo do poder político com o objetivo de conseguir um equilíbrio das forças desenvolvidas livremente, a tendência destrutiva de estender a repressão ao mundo inteiro para obter mera superioridade de poder; em vez de psicologia, o uso dos métodos psicológicos para extinguir a centelha individual e inibir o desenvolvimento da consciência e da inteligência.
Encontramos este conflito em quase todos os cidadãos de todos os países do Ocidente. Mas, a maioria não tem consciência dele. Na Rússia, que foi sempre um país bárbaro, o lado inconsciente do conflito alcançou a superfície e substituiu a consciência civilizada. E tememos que isto possa acontecer-nos também. Tememos ainda mais esta esquizofrenia, uma vez que a Alemanha mostrou com toda clareza que até uma comunidade civilizada pode ser presa de catástrofe mental semelhante, e isto do dia para a noite, por assim dizer (o que prova o meu ponto de vista).
Por isso temos de considerar o seguinte: 1) Não somos imunes. 2) Os poderes destrutivos estão precisamente dentro de nós. 3) Quanto mais inconscientes forem, tanto mais perigosos. 4) Somos ameaçados tanto de dentro quanto de fora. 5) Não podemos destruir o inimigo pela força; não devemos nem mesmo tentar vencer a Rússia, porque destruiríamos a nós mesmos, uma vez que a Rússia é, por assim dizer, idêntica ao nosso inconsciente que contém nosso instintos e todos os germes de nosso desenvolvimento futuro. 6) O inconsciente deve ser integrado devagar, sem violência e com o devido respeito pelos nossos valores éticos. Isto requer muitas alterações em nossos pontos de vista religiosos e filosóficos.
O Ocidente se vê forçado ao rearmamento. Temos de estar preparados para o pior. Se for o caso, a Europa terá de ser organizada pelos Estados Unidos à tort te à travers. E isto será de vital importância para os Estados Unidos. Mas nenhuma agressão! Sob hipótese alguma! Somente a própria Rússia poderá derrotar a si mesma. Não podemos derrotar os nossos instintos, mas eles podem inibir-se uns aos outros; e eles o fazem se nós os deixarmos correr livres dentro de certos limites, isto é, apenas até aonde eles não nos matem. A pessoa atira quando se sente ameaçada na própria existência, mas não quando é apenas ferida nos próprios sentimentos ou na convicções tradicionais.
O acervo de armas, ainda que indispensável, é uma grande tentação para usá-las. Por isso, atenção com os conselheiros militares! Eles sentem comichão para apertar o gatilho. A Rússia realmente está no caminho da guerra, e somente o medo daqueles que disso sabem é que a retém. O seu país já está em guerra com a Rússia, como o drôle de guerre 1939/40. Nem a racionalidade nem diplomacia são métodos para lidar efetivamente com a Rússia, porque ela é dominada por um impulso elementar (como aconteceu com Hitler).
Para mim a principal dificuldades não está na Rússia, mas na Europa que se tornou uma extensão vital dos Estados Unidos. A grande questão é se as nações historicamente diferenciadas da Europa podem ser consolidadas o bastante para formar um bloco unido. Além das medidas de defesa militar, a Organização Europeia constituiu o problema mais premente e difícil da política americana.
Gostaria de chamar sua atenção para o meu pequeno livro (4). Ali encontrará mais algumas contribuições ao grande problema de nosso tempo. Parece-me que na raiz de todos esses problemas está o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que destruiu a base metafísica do ser humano. O bem-estar social substituiu o reino de Deus.
A felicidade terrena só é conseguida através da desgraça de outra pessoa, pois a riqueza cresce às custas da pobreza. O “bem-estar social” tornou-se o engodo, a isca e o slogan das massas desenraizadas que só pensam em termos de necessidades e ressentimentos pessoais; mas elas não vêem que não há como escapar da lei da compensação. Sua filosofia marxista baseia-se na convicção de que num futuro qualquer o rio pode ser persuadido a inverter o seu curso correndo para cima. Não enxergam que elas mesmas deverão pagar por esta proeza com sofrimentos intermináveis. Por isso é bem saber que, na melhor das hipóteses, a vida nesta terra oscila entre uma quantidade igual de prazer e de miséria, e que o verdadeiro progresso é apenas a adaptação psicológica às várias formas da miséria individual. A miséria é relativa. Quando muitas pessoas têm dois carros, a pessoa com um só carro é um proletário privado dos bens deste mundo e, portanto, com direito de subverter a ordem social. A Alemanha não detinha a supremacia mundial, por isso era um “joão-ninguém”.
Todos nós pensamos em termos de bem-estar social. E este é o grande erro, pois quanto mais se procura estancar as formas vulgares da miséria, tanto mais se é enredado nas variantes inesperadas, novas, complicadas, intricadas e incompreensíveis da infelicidade, numa forma nunca antes sonhada. Basta pensar no aumento quase sinistro de divórcios e neuroses! Devo dizer que prefiro uma pobreza modesta ou algum desconforto material (por exemplo, falta de chuveiro, de eletricidade, de carro, etc.) a essas pragas. O pouco de progresso social conseguido pela Alemanha nazista e pela Rússia é compensado pelo terror policial, um item novo e muito considerável na lista das misérias, mas consequência inevitável do “bem-estar social”. Por que não “bem-estar espiritual”? Não há nenhum governo no mundo preocupado com isso. No entanto, a ordem espiritual é o problema.
Se entendermos o que a Rússia é em nós, saberemos como lidar com ela politicamente.
A Antiga Roma, não sabendo como lidar com o seu problema social, a escravatura, sucumbiu às investidas das tribos bárbaras. A Idade Média cristã resistiu à primeira onda asiática e às segunda (dos turcos). Agora o mundo se defronta com a terceira. O grande perigo é que não estamos conscientes do nosso problema espiritual, assim como Roma não esteve do seu. A tecnologia e o “bem-estar social” nada oferecem par superar nossa insatisfação e inquietação espirituais. Mas por elas somos ameaçados de dentro e de fora. Ainda não entendemos que a descoberta do inconsciente significa uma enorme tarefa espiritual que deve ser cumprida se quisermos preservar nossa civilização.
Espero que desculpe a maneira desordenada com que apresentei as minhas ideias que a senhora desejava ouvir. Sei que minha tentativa é bastante incompleta, mas não posso escrever um livro todo. Espero, porém, que possa ao menos aproveitar alguma coisa.
Yours sincerely, C. G. Jung.


(1) Dorothy Thompson (1894-1961), jornalista americana, casada com Siclair Lewis. No início da década de trinta trabalhou como repórter na Alemanha, mas foi expulsa devido à sua posição contra o nacionalsocialismo.
(2) O “Bollingen-Library of Congress Award” concedeu a Ezra Pound um prêmio por sua obra “Cantos” (1949). Isto provocou enorme controvérsia, pois o poeta, vivendo então na Itália, defendeu o facismo em transmissões radiofônicas. Em 1945, foi preso pelo exército americano em Pisa, depois levado para Washington, onde ficou internado num manicômio durante 12 anos, até 1958. No primeiro de dois artigos em The Saturday Review of Literature (11 e 18 de junho de 1949), Roberto Hillyer envolveu Jung na discussão e, com base em afirmações maldosas, procurou apresentá-lo como nazista e antissemita. Jung nada teve a ver com a concessão do prêmio; apenas que este trazia o nome de seu lugar de férias “Bollingen”, uma vez que a “Bollingen Foundation” colocou à disposição da “Library of Congress” a importância do prêmio ($1,000). Nas cartas de leitores, provocadas pelo artigo de Hillyer, continuaram os ataques a Jung “with medacity and malice”, como se expressa Doroty Thompson em sua carta a Jung (10.09.1949).
(3)  Mrs. Thompson havia perguntado a opinião de Jung sobre a atual situação da América com relação à Rússia e pedido conselhos sobre a atitude da América. Ela temia que pudesse haver guerra entre os dois países.
(4) “Ensaios sobre a história contemporânea”, em Obras Completas, Vol. X.

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