To Father Victor White
(16ª carta, no total 31 cartas escritas entre 26/09/45 a 30/04/60)
Oxford, 31 de dezembro de 1949
My dear Victor,
Antes de findar o ano
velho, gostaria de escrever-lhe – já tive intenções de fazê-lo antes, mas não
encontrei o tempo suficiente. Primeiramente aconteceu (em fins de outubro) um
acidente lamentável: minha esposa caiu no corredor (escorregando num tapete) e
quebrou o braço direito à altura do ombro – uma fratura deveras grave. Ficou
dois meses no hospital. Depois, eu mesmo fiquei acamado devido a uma gripe
intestinal e problemas de fígado; a seguir, Marie-Jeanne Schmid (1) foi
acometida de doença semelhante que a derrubou. Minha correspondência e outras
obrigações poderiam ir, como de fato foram, pelos ares, isto é, entraram
simplesmente no nirvana. Agora estou razoavelmente bem e posso escrever-lhe.
O senhor me deu o que
pensar por um bom tempo com a sua “correctio fatuorum” (2) nos Dominican
Studies. Achei a exposição muito interessante e esclarecedora, e ela me obrigou
a recorrer a Basílio Magno (3), que é o perpetrador do “omne malum a homine”
(4) (Hom. II in Hex. – Migne (P. G.) XXIX, col. 37s): “cada um de nós deveria
considerar-se como o autor da maldade que está nele” (texto em grego - thz en eautv kakiaz ekastos eauton apchgon gnvrizetv) (5).
O mal origina-se fora
de uma “disposição da alma” (em grego - diaqesiz
en yuch) (6) e por isso é “não uma entidade viva” (em grego - ouci ousia zvsa) (7). Ele apenas
deriva da raqumia, da negligência e
do desleixo, que são obviamente “o que não existe, não-ser” (em grego - mh on) (8), já que são puramente psicológicos. E assim é também hoje
em dia: se reduzirmos alguma coisa a um capricho ou imaginação, ela se desfaz
em mh on “o que não existe,
não-ser”, isto é, em nada. Eu creio firmemente que a psique é uma “substância,
essência” (em grego - ousia)
(9). Também mergulhei em Sto. Tomás, mas não me senti refrescado com isso.
Todos desconsideram o fato de que o bem e o mal são as metades equivalentes de
um julgamento lógico. Todos se omitem também de discutir a eternidade do
demônio, do inferno e da condenação, coisas que certamente não são mh on - “o que não existe, não-ser”, nem
são boas (isto é, boas apenas para os espectadores celestes).
Este assunto da
“privatio boni” (10) me é odioso devido às suas consequências perigosas:
provoca uma inflação negativa na pessoa (11) que não pode deixar de
imaginar-se, se não como fonte do mal, pelo menos como grande destruidor, capaz
de arruinar a bela criação de Deus. Esta doutrina leva a uma vaidade diabólica
e é em grande parte responsável pela decorrente depreciação da alma humana como
morada original do mal. Isto atribui uma importância monstruosa à alma, e
nenhuma palavra sobre quem é o responsável pela presença da serpente no
paraíso.
Minha preocupação com a
questão do bem e do mal nada tem a ver com a metafísica. Para mim é um problema
da psicologia. Não faço afirmações metafísicas, nem sou neomaniqueu em meu
íntimo; ao contrário, estou profundamente convencido da unidade do si-mesmo,
como fica demonstrado no simbolismo da mandala. Mas o dualismo está disfarçado
nas sombras da doutrina cristã: o demônio não quer ser salvo, nem a condenação
eterna chegará a um fim. A esperança otimista de Orígenes, ou ao menos a sua
pergunta se o demônio não seria salvo no fim, não foi muito bem recebida.
Enquanto o mal for um
“o que não existe, não-ser” (em grego - mh
on), ninguém levará a sério a sua própria sombra. Hitler e
Stalin continuarão representando uma simples “falta acidental de perfeição”. O
futuro da humanidade vai depender muito do reconhecimento da sombra.
Psicologicamente falando, o mal é terrivelmente real. É um erro fatal diminuir
seu poder e sua realidade, ainda que só metafisicamente. Lamento que isto vá
até as próprias raízes do cristianismo. O mal realmente não diminui ao ser
abafado como não-realidade ou como simples negligência do ser humano. Existiu
antes dele, quando não podia sequer alcançá-lo com a mão. Deus é o mistério de
todos os mistérios, um verdadeiro Tremendum. O bem e o mal são relatividades
psicológicas e, como tais, bem reais, mesmo que não saibamos o que eles sejam.
Por isso não deveriam ser projetados sobre um ser transcendente. Só assim
evita-se o dualismo maniqueísta sem “pettiones principii” e outros subterfúgios.
Acho que sou um herege.
O senhor deve ter tido
um tempo interessante na Espanha. Eu não tinha a menor ideia do que um College
inglês poderia fazer em Valladolid.
Eu sei que o senhor
precisa criticar-me. Decididamente não estou do lado vencedor, mas sou muito
impopular tanto na esquerda quanto na direita. Não sei se mereço ser incluído
em suas orações. Seja como for, encontrei uma consolidação no abismo de um éon:
“E onde alguém está sozinho, eu digo: eu estou com ele” (em grego: kai opou eiz esti monoz, legv eimi met autou) (12).
Com os melhores votos
de um novo ano cheio de realizações e felicidades.
Yours cordially, C. G. Jung.
(1) Secretária de Jung por longos anos, agora
senhora Dr. Boller-Schmid.
(2) “Correção dos loucos”. Jung refere-se às
recensões do padre White dos Eranos-Jahrbücher 1947 e 1948, em Dominican
Studies, vol. II, n. 4, Oxford, outubro de 1949. O padre White escreveu sobre o
ensaio de Jung “Über das Selbst” (Eranos-Jahrchuch 1948, Zurique 1949); mais
tarde capítulo IV de Aion) e criticou que ele havia entendido mal a doutrina da
privatio boni a partir de um “dualismo quase maniqueu”. Chamou essas “somewhat confused and
confusing pages” de “another infelicitous excursion of a great scientist outside
his own orbit...” e falou de um “brief and unhappy encounter with scholastic
“thought” de Jung. Tradução livre: "Páginas um tanto confusas e
confusas"; "Outra excursão infeliz de um grande cientista fora de sua
própria órbita ..."; "Encontro breve e infeliz com o" pensamento
escolar".
(3) Basílio Magno, bispo de Cesareia por volta de
330-370. Seu Hexaemeron (Hex.) contém uma coletânea de sermões sobre os
primeiros versículos do Gênesis e uma explicação dos Salmos.
(4) “Omne bonum a Deo, omne malum a homine” (Todo
bem vem de Deus, e todo mal vem do homem). Quanto à explicação dessas palavras
de Jung, bem como das seguintes citações gregas, cf. Aion, OC, Vol. IX/2, §
74-81s.
(5) Cada um de nós deveria considerar-se como o
autor da maldade que está nele.
(6) Disposição da alma.
(7) Não uma entidade viva.
(8) O que não existe, não-ser.
(9) Substância, essência.
(10)
Privatio Boni, ausência do bem. É possível encontrar a
doutrina do mal como privatio boni já em Orígenes (185-253), mas foi confirmada
apenas por Agostinho (354-430). Jung viu nesta doutrina uma tendência de não
atribuir substância e realidade ao mal, mas ele achava que tanto o bem quanto o
mal tinham o mesmo caráter real. Para a doutrina da Igreja, o mal não tem em si
existência positiva, mas é a ausência (privatio) do bem, só ele verdadeiramente
real. Mas ele é real, como real é a escuridão, apesar de consistir na falta de
luz. As duas posições antagônicas – a teológica-metafísica e a
psicológico-empírica – sempre tiveram grande espaço nas conversas entre Jung e
White, o que levou finalmente a um afastamento dos dois. Cf. Aion, OC, vol.
IX/2, § 75s. Cf. também Victor White, God and the
Unconscious e Soul and Psyche, especialmente o capítulo 9: “The integration of
Evil”.
(11)
A doutrina “omne malum a homine” confere ao ser humano o
papel de um parceiro com os mesmos poderes de Deus.
(12)
“E onde alguém está sozinho, eu digo: eu estou com ele”
(Papiro Grenfell & Hunt, Logion, I, 5).
Referência Bibliográfica:
JUNG, C. G. Cartas: 1946-1955 - Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 146-149.
Referência Bibliográfica:
JUNG, C. G. Cartas: 1946-1955 - Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 146-149.
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