Ao Dr. Gilles Quispel
(1)
Wassenaar/Holanda
21 de abril de 1950
Prezado Doutor,
Desculpe a demora em responder à sua pergunta (2). Tenho tanto a fazer e tão
vasta correspondência que minhas forças limitadas já não dão conta de tudo.
Acontece então que uma carta, que eu teria preferido responder logo, fica
submersa por longo tempo na enxurrada de outras menos importantes.
É muito difícil no
julgamento de imagens gnósticas dizer o que é experiência interna genuína e o
que é superestrutura filosófica. Contudo é possível reconhecer com bastante
clareza que, na enumeração dos diversos símbolos naasenos do Ser Uno em
Hipólito, trata-se em muitos casos de imagens primitivas genuínas. Mas outra
questão é saber até onde retrocede a experiência imediata que está por detrás
dessas imagens, isto é, até que ponto essas imagens são tradição. Sabemos da
experiência de nossos pacientes que elas podem ser experiências espontâneas das
quais devemos excluir com grande certeza qualquer conhecimento da tradição.
Assim, por exemplo, as figuras que os pacientes desenham ocasionalmente são
muitas vezes recriações espontâneas de imagens com sentido histórico-religioso.
Quando Valentino
empregou a expressão apokoptein (3)
para a separação da sombra (de Cristo}), pensou provavelmente no uso mitológico
dessa palavra, pois a separação da sombra tem impreterivelmente o sentido de
cortar fora o lado ctônico. Não me parece provável que, quando Cristo separa
sua sombra, isto seja uma experiência diretamente visionária, mas sobretudo uma
ideia filosófica, expressa drasticamente.
Outra coisa é a imagem
da pessoa com asas. Isto é bem mais antigo do que Fedro (por exemplo, na
Babilônia) (4).
No que se refere ao ovo
(5), este ovo ou o útero não está restrito à esfera grega, mas ocorre também na
Índia como huraniagarbha (semente de ouro-útero). O romper da casca (6) é uma
figura de linguagem que ocorre praticamente em toda parte. Isto não precisa ser
necessariamente uma experiência primitiva e direta. Acredito que muitos símbolos
derivam simplesmente da linguagem e das metáforas linguísticas. Por outro lado,
acho improvável que da filosofia possa surgir mitologia. Da filosofia pode originar-se
alegoria, mas não autêntica mitologia, pois esta é mais velha do que aquela. Mas
tem afinidade com a filosofia devido ao seu teor de ideias filosóficas em embrião.
Na filosofia as ideias são desenroladas. Seu aspecto mitológico significaria,
porém, sua involução. Mas esta última nunca leva a uma mitologia, mas apenas a
uma alegoria. A interpretação filosófica e a imagem primitiva estão sempre juntas,l
como o senhor observou muito bem, pois nada provoca tanto a reflexão filosófica
como a experiência de imagens primitivas. Acontece o mesmo no sonho: quando um conteúdo
inconsciente passa para a consciência, ele só consegue esta passagem
revestindo-se das ideias presentes na consciência, tornando-se então manifesto.
Mas não temos a menor ideia de como as coisas estão no inconsciente. É por isso
também que defino os arquétipos como formas irrepresentáveis que se revestem de
outro material nas experiências respectivas.
Não se pode afirmar
como experiência primitiva e direta o caráter arquetípico de certas imagens
transmitidas historicamente. Só podemos chegar à conclusão de que exprima um
arquétipo, quando conseguimos demonstrar, através da pesquisa comparada, que
imagens idênticas ou muito semelhantes ocorrem em outras culturas e, ainda
assim, como experiência primitiva, individual e verificável em pessoas da
atualidade. Por isso devemos procurar em primeiro lugar a explicação histórica
de um símbolo sempre em sua própria esfera cultural e, então, provar a existência
de símbolos iguais ou semelhantes em outras esferas culturais para alicerçar a afirmação
de que é um arquétipo. Mas esta afirmação só se torna plenamente segura quando
a imagem pode ser encontrada também num sonho moderno e sobretudo num indivíduo
que nunca teve contato com a tradição correspondente. Este é, ao menos, o
método que eu adoto.
Na esperança de ter
respondido à sua pergunta, permaneço
Com elevada
consideração. C. G. Jung.
(1) Dr.
Gilles Quispel, nascido em 1916, professor de história da Igreja antiga na
Universidade de Utrecht. Autoridade no campo do gnosticismo.
(2) Em
sua carta de 10.09.1949, Quispel falou da “dificuldade da relação entre a interpretação
filosófica das imagens gnósticas e a experiência espontânea delas”.
(3) Quispel
mencionou que o gnóstico Valentino (século II) empregou esta palavra (=separar,
cortar fora), que é usada para a emasculação por exemplo de Átis, também para
Cristo: “Mas Cristo, sendo homem, cortou de si a sombra...” Valentino
interpretou isto no sentido da filosofia grega como “um despir-se das paixões”.
Cf. Aion, Vol. IX/2, § 75, nota 23.
(4) Lê-se
no gnóstico Basílides (século II) com referência à tríplice filiação: “O
segundo filho (...) recebe asas, assim como Platão deu asas à alma em Fedro).
Cf. Aion, § 118. Quanto à tradição babilônica, Cf. Símbolos da Transformação, §
113.
(5) Segundo
a gnose de Basílides, o “Grande Arconte” surgiu da casca quebrada de um ovo, o
que Quispel compara à concepção persa do surgimento do mundo a partir de um
ovo. Outra concepção gnóstica (Hipólito) foi a do mundo como útero.
(6) Cf.
Carta a Kirsch, de 18.11.1952, nota 7.
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