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Ao Dr. Joseph Goldbrunner

Individuation a Study of the Depth Psychology of Carl Gustav Jung ...
Ao Dr. Joseph Goldbrunner

Stockdorf bei Müchen

14 de maio de 1950

Prezado senhor,
Permita-me que, na qualidade de quase conhecido e quase desconhecido, expresse meu agradecimento por sua exposição objetiva e simpática de minha psicologia (1). Há de fato poucos autores – como o senhor mesmo já deve ter percebido – que conseguiram fazer um julgamento objetivo de minhas constatações. Por isso tenho razões de sobra para agradecer o seu trabalho. Gostaria de contentar-me com uma apreciação elogiosa de seu livro, não fossem alguns pontos que me parecem merecer algum esclarecimento.
O senhor indica com razão que a pessoa, segundo a minha concepção, está encerrada na psique (não em sua psique). Pode o senhor mencionar alguma ideia que não seja psíquica? Pode a pessoa adotar algum ponto de vista fora da psique? Ela pode afirmar que sim, mas a afirmação não cria um ponto do lado de fora; e estivesse ela lá, não teria nenhuma psique. Tudo o que nos toca e que nós tocamos é reflexo, portanto, psique.
Não poderia ser diferente que minha psicologia estivesse toda ela encerrada na psique. Não se poderia acusar a geologia de só se preocupar com o solo, nem a astronomia de restringir-se apenas ao céu estrelado.
No sentido estrito, a psicologia é a ciência dos conteúdos da consciência. Seu objeto, portanto, não é metafísico, caso contrário ela seria uma metafísica. Pode-se acusar a física de não ser uma metafísica? É evidente que todos os objetos da física sejam fenômenos físicos. Por que seria a psicologia a única exceção desta regra?
Tudo o que a pessoa humana entende como sendo Deus é imagem psíquica; e não é menos imagem mesmo quando afirma mil vezes que não é imagem. Se não fosse imagem, ele não poderia representar-se absolutamente nada. Por isso diz muito bem o Mestre Eckart que “Deus é puro nada”.
Como ciência empírica, a psicologia só pode constatar que o inconsciente produz espontaneamente imagens que desde sempre foram consideradas “imagens de Deus”. Mas como a essência da psique nos é totalmente desconhecida, a ciência não é capaz de estabelecer o que é refletido pela imagem. Chegamos aqui ao “limite do humano” do qual diz G Von Le Fort (2) que é “a porta de entrada de Deus”. Como ser humano individual posso concordar com essa concepção, mas apesar de toda minha boa vontade não posso afirmar que isto seja uma afirmação demonstrável, o que em última análise é o objetivo da ciência. É uma confissão subjetiva para a qual não há lugar na ciência.
Também é errado supor que a individuação seja autorredenção. É o que exatamente ela não é. Como o senhor escreve muito bem, a gente se expõe a todas as forças do não-ego, do céu e do inferno, da graça e da destruição, para chegar àquele ponto onde nos tornamos suficientemente simples para aceitar aquelas influências ou o que quer que seja que chamamos de “vontade de Deus” – aquelas influências que provêm do Inescrutável e cuja fonte está atrás das imagens psíquicas que ao mesmo tempo revelam e escondem. Como se poderia olhar através desse “tapume de madeira”, isto é para mim totalmente inimaginável. Como se pode ver, imaginar ou pensar o que é não-psíquico? Mesmo que eu afirme que é não-psíquico, ainda assim é a minha representação que está diante de um fato incognoscível; e se for não-psíquico, também não pode ser representado.
Nós aceitamos como certo que as imagens são representações de algo. Enquanto este algo deva ser não-psíquico, é necessariamente inconcebível, por tudo que é representado é psíquico; mesmo o notório e evidente azul do céu não existe na física, isto é, é expresso pelo conceito matemático do “comprimento das ondas”. Quem então, pelo fato de ver o azul, pode declarar que o azul existe em si e que não é psíquico? Isto seria contrário ao melhor conhecimento e, por isso, imoral.
Estou profundamente impressionado com o fato de as pessoas estarem tão sujeitas ao erro e à ilusão. Acho, portanto, ser obrigação moral não fazer afirmações sobre aquelas coisas que não podemos ver nem comprovar, e acho que é uma transgressão epistemológica fazê-lo assim mesmo. Estas regras valem para a ciência empírica. A metafísica se pauta por outras regras. Considero obrigatórias para mim as regras da ciência empírica. Por isso não há em meus trabalhos afirmações metafísicas, mas também nenhuma negação das afirmações metafísicas.
Espero que estas explicações talvez possam servir-lhe para alguma coisa.
Saudações cordiais, C. G. Jung.

(1) Joseph Goldbrunner, Individuation. Die Tiefenpsychologie Von C. G. Jung, Müchen-Krailling 1949. Trata-se de uma reelaboração de uma edição particular do autor, feita em 1941.
(2) Gertrud Von Le Fort, 1876-1971, escritora.

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