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Ao Dr. Zwi Werblowsky (1)

 

 

Amsterdã, 28 de março de 1951.

 

Prezado senhor Werblowsky,

Espero que tenha recebido, neste ínterim, o meu curto prefácio (2). Infelizmente, só agora tenho tempo para algumas observações sobre o seu trabalho:

P. 80. Proporia uma terminologia um pouco diferente. Em vez de dizer “promovendo o processo de individuação” – exatamente a coisa que não se pode fazer, porque leva imediatamente a uma inflação ou a uma identificação com arquétipos – recomendaria algo como “tornando-se temerariamente muito egoísta”. O termo individuação deve ser reservado para a evolução legítima da enteléquia individual.

É bem esclarecedora sua afirmação de que a hybris foi o pior vício específico dos gregos. Corresponde ao conceito de superbia de Agostinho. Ele diz que há dois pecados capitais: a superbia e a concupiscentia (3). É de se supor então que, se o vício específico dos gregos é a superbia, o vício da concupiscentia calha para os judeus. Isto encontramos claramente em Freud, sobretudo em seu “princípio do prazer”, ao qual corresponde por sua vez o complexo de castração que, dito de passagem, tem um papel bem menos importante nos não-judeus. Na minha práxis, foram poucas as vezes que sequer o mencionei. Nos gentiles a hybris é realmente mais relevante.

P. 84. Sugiro portanto uma revisão de seu texto. A hybris não pode ser descrita como uma “hipertrofia da masculinidade”, pois não se aplicaria ao caso da mulher. A hybris é uma inflação da natureza da pessoa em geral. Também é muito duvidoso que se possa derivar da hybris a homossexualidade grega. É antes um fenômeno social que se desenvolve sempre que se trata de cimentar uma sociedade de homens como estágio prévio do Estado. Isto é bem evidente na Grécia.

Também não se pode dizer que os homossexuais desprezam as mulheres. São muitas vezes bons amigos delas; e os jovens homossexuais são convidados bem-vindos de mulheres de certa idade, onde eles se sentem bem porque estão rodeados de mães. A maioria dos homossexuais são homens pendentes ou potenciais que ainda estão dependurados na saia da mãe.

O complexo de castração que o senhor menciona nesse contexto nada tem a ver propriamente com a homossexualidade, mas sim com o sentido da circuncisão judaica que, como operação marcante num membro sensível, significa uma lembrança da concupiscentia. E, por ser uma ação prescrita pela lei de Deus, representa uma limitação da concupiscentia. Isto visa consolidar a pertença dos homens à lei, ou a Deus, como um estado permanente. É uma espécie de katoch, uma expressão do casamento de Javé com Israel. Quando a ideia do casamento com Deus se torna obsoleta, a aludida castração – como vem a ser entendida a circuncisão – regride para o significado de uma dependência da mãe (mito de Átis) (5). Mas enquanto a mãe significa simplesmente o inconsciente, este toma o lugar de Javé. É certo que a homossexualidade entra indiretamente aqui, enquanto é o resultado de um complexo onipotente de mãe. Devido ao seu “alheamento da mulher”, o filho fixado na mãe está em constante perigo de desenvolver o autoerotismo e certa autoestima exagerada. A arrogância característica do jovem contra o sexo feminino é simples meio de defesa contra a dominação da mãe e dificilmente pode ser interpretada como hybris.

Como disse acima, a homossexualidade “grega” encontra-se em todas as sociedades primitivas de homens, sem que isto os levasse aos altos voos da cultura grega. A verdadeira razão do espírito grego não está nestes fenômenos primitivos, mas num talento especial do povo. Penso que se deve ter muita cautela em supor que o gênio de uma cultura tenha algo a ver com “masculinidade”.

P. 85, nota 21. O senhor diz que o arquétipo virgem-mãe contém uma tendência antissexual. Isto é difícil de afirmar, pois o culto da deusa oriental do amor é tudo menos antissexual.

Li com muito prazer o seu trabalho e achei extremamente esclarecedora sobretudo a diferença entre a psicologia judaica e grega. Devo confessar que nunca li por inteiro o Paraíso perdido, de Milton, nem o Messias de Klopstock. Por isso aprendi muita coisa de seu escrito neste aspecto. No meu prefácio procurei analisar o surgimento da figura de Satanás no século XVII na perspectiva milenar.

Muito obrigado pelas notícias sobre Blake que incluiu em sua carta. Não sou grande amigo dele, pois estou sempre inclinado a criticá-lo.

Saudações cordiais, C. G. Jung.

 

(1) ~Dr. R. J. Zwi Werblowsky, nascido em 1924, professor da Universidade de Leeds e do “Institute of Jewish Studies”, Manchester. Agora professor de ciências da religião na Universidade Hebraica de Jerusalém, de passagem por Amsterdã.

(2) Prefácio ao livro de Werblowsky, Lucifer and Prometheus: A Study in Milton’s Satan, Londres, 1952. – OC. Vol. XI.

(3) Jung viu um paralelo à superbia e concupiscentia, conceitos morais de Agostinho, nos instintos de poder e sexuais, fontes de inúmeros conflitos e com os quais a psicologia profunda deve ocupar-se. Cf. Presente e futuro, OC. Vol. X, § 555.

(4) Aprisionamento ou cadeia.

(5) Cf. Símbolos da transformação. OC. Vol. V, § 659s.

 

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