Zwiefalten (Württ) Alemanha, 22 de março de 1951.
Prezado pastor,
Muito me alegrei por
ter novamente notícias suas. Infelizmente não posso atender ao seu desejo (1).
Tenho tanta outra coisa a fazer e já não consigo produzir o mesmo que
antigamente. Também não devo trabalhar demais.
Não sei qual o material
de sonhos que o senhor está imaginando, nem como ele poderia estar vinculado
com a neutralidade desarmada da Alemanha. O desarmamento da Alemanha já é um
sonho que só pode ocorrer numa nação adormecida, e isto num povo que por duas
vezes em meio século devastou os países vizinhos com a guerra! Este é o sonho
de uma nação profundamente guerreira, mas que se considera conscientemente como
inofensiva e amante da paz. De fato, alguém já deve estar sonhando se pensa que
pode viver desarmado num mundo anárquico onde só imperam astúcia e violência.
Todo alemão que não dorme e sonha sabe que está mais do que na hora de
armar-se; e quanto mais conscientemente o fizer, melhor será para a paz. Mas
realmente perigosos são os sonhadores inofensivos que não sabem que querem
perecer outra vez gloriosamente, e isto por causa de seu maldito jogo de
salvadores. Uma vez mata-se os concidadãos para convertê-los á nova religião do
naconalsocialismo; outra vez prega-se o desarmamento para entregar o próprio
país à tirania russa. O que teria acontecido a nós na Suíça se não tivéssemos
tido um exército? Pessoas como o senhor Noack receberiam uma pensão por
relevantes serviços preparatórios, e nós outros seríamos simplesmente prensados
contra o muro pelos portadores da cultura. O mesmo aconteceria ao senhor com os
russos, pois também eles são salvadores do universo e querem curar o mundo todo
com sua doença, exatamente como queriam os nazistas. O senhor acredita deveras
que algum assaltante se deixe intimidar pelo desarmamento alemão? O senhor sabe
o que o lobo disse ao cordeiro: “Você está me provocando?”
É possível ser neutro
com armas, sem com isso sucumbir ao militarismo. Mas a neutralidade desarmada
parece a mim como a todos os não-alemães o cúmulo da falta de instinto, e eu
ainda acrescentaria, com base num certo conhecimento íntimo do caráter nacional
alemão, o conformar-se com uma extravagância um tanto alheia à realidade deste
mundo. Mas o perigoso da proposta de Noack está no fato de ela representar de
novo uma tentativa nacional de suicídio. Donde provém o descomedimento ou
“intemperança” do alemão, donde seu amor ao naufrágio nacional? Quando Jacob
Burckhard ouviu falar da declaração do imperador em Versalhes (2), disse: “Isso
é o naufrágio da Alemanha”. Desde então a corrente das tentativas de naufrágio
não quer romper-se. Parece-me que, para mudar, seria bom ser também uma vez
razoável.
Perdoe-me, prezado
pastor, essas despretensiosas opiniões. Elas podem explicar-lhe por que me
parece totalmente fora de propósito – ainda que me fosse possível – considerar
como problema sério a questão proposta. Veja nesta carta apenas uma opinião
pessoal! Não pretendo ofender a nação alemã na pessoa de algum de seus
representantes individuais.
Ter armas é um mal; não
tê-las é um mal ainda maior. A pessoa razoável contenta-se modestamente com o
mal menor; ela prefere ver heróicos crepúsculos de deuses e gestos
herostráticos semelhantes no teatro e deixá-los aos histriões; prefere
encarcerar a tempo os loucos e nunca venerá-los como lideres e salvadores. Minhas
opiniões e advertências neste sentido são tão fúteis e inúteis quanto as de
Jacob Burckhard. Si non crediderint tibi
beque audierint sermonem signi prioris (3), então apenas Deus tem a palavra.
A pessoa se contente, em vista de sua hybris, sempre com o mal menor e
preserve-se da tentação satânica dos grandes gestos que visam apenas
impressionar e auto-intoxicar.
Saudações cordiais, C.
G. Jung
(1) O
Pastor Pfäfflin havia pedido a Jung um artigo sobre o tema “Neutralização
desarmada da Alemanha”, a ser publicado numa revista recém-fundada na Alemanha,
de nome Versöhnung, e se possível usando material de sonhos. Dr. Noack,
professor de História na Universidade de Würzburg, havia publicado nesta mesma
revista um artigo favorável à questão.
(2) Em
28 de janeiro de 1871, o rei da Prússia, Guilherme, fora coroado imperador da
Alemanha em Versalhes.
(3) Êxodo
4.8: “Se não acreditarem em ti, nem atenderem à evidência do primeiro sinal...”
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