Ao Dr. H.
Alemanha, 30 de agosto de 1951.
Prezado senhor H.,
O senhor precisa
desculpar o meu longo silêncio. É que na primavera sofri muito do fígado e tive
de ficar muitas vezes de cama. E nesse misere todo, ainda escrevi um pequeno
ensaio (1) (cerca de 100 laudas datilografadas), cuja publicação me trouxe
algumas preocupações. Tenho receio de estar mexendo um caldeirão de bruxas.
Trata-se da mesma questão que o senhor levantou em sua carta de 1º de maio. Eu
mesmo sinto que ainda não encontrei a formulação exata de minha resposta, isto
é, aquele modo de exposição clara que pode transmitir ao público a minha
concepção, sem provocar tantos mal-entendidos. O meu modus procedendi é
naturalmente o empírico: como posso descrever satisfatoriamente o fenômeno
“Cristo” sob o aspecto da experiência psicológica?
As afirmações sobre
Cristo são em parte afirmações sobre um homem empírico e, na maior parte,
afirmações sobre um homem-deus mitológico. A partir dessas diversas afirmações
é possível reconstruir uma personalidade que, como homem empírico, era idêntica
ao tipo tradicionalmente conhecido do filho do homem, encontrado no Livro de
Henoc (2), de ampla difusão na época. onde quer que aconteçam tais identidades,
surgem também os efeitos arquetípicos característicos, sobretudo a numinosidade
e os fenômenos sincronísticos, sendo pois inseparáveis da figura de Cristo as
narrativas dos milagres. O primeiro efeito explica a força sugestiva
irresistível da personalidade, pois só o “capturado” é capaz de “capturar”; os
outros ocorrem principalmente no campo de força de um arquétipo e, devido a seu
caráter inespacial e intemporal, são acausais, isto é, “milagres”. (Dei há
pouco tempo uma palestra sobre sincronicidade no encontro Eranos (3). O escrito
aparecerá em breve nas atas desse Instituto (4). Este efeito notável aponta
para a natureza “psicóide” (5) e essencialmente transcendental do arquétipo
como um “arranjador” das formas psíquicas dentro e fora da psique. (Na física
teórica, o arquétipo corresponde ao modelo de um átomo radiativo, com a
diferença, porém, de que o átomo consiste de relações quantitativas, ao passo
que o arquétipo consiste de relações qualitativas, isto é, cheias de sentido,
aparecendo o quantum apenas no grau de numinosidade. Na física o quale aparece
no ser-assim (So-Sein) das chamadas descontinuidades como, por exemplo, no
quanto ou no fenômeno do valor médio do tempo de uma substância radiativa).
Devido à predominância
do arquétipo, a personalidade humana “controlada” está em contato direto com o
mundus archetypus (6) e sua vida, isto é, sua biografia, e representa um breve
episódio no curso milenar das coisas ou na “eterna revolução” das imagens
“divinas”. Uma coisa eternamente presente aparecer no tempo como uma sucessão.
“Quando os tempos se haviam completado”, o “Deus-criador solitário
transformou-se num pai e gerou a si mesmo como filho, ainda que ele exista
desde a eternidade, isto é, no não-tempo pleromático ou na forma transcendental
de ser, sempre Pai-Filho-Espírito-Mãe, etc., isto é, a sucessão de pressupostos
arquetípicos.
Ainda que o arquétipo
psicóide seja apenas um modelo ou postulado, os efeitos arquetípicos têm
existência tão real quanto a radioatividade. Quem foi capturado pelo arquétipo
do anthropos vive o homem-deus, e podemos dizer dele que ele é homem-deus. Os
arquétipos não são apenas representações, mas entidades, exatamente como todos
os números. Estes não são apenas auxiliares da contabilidade como, por exemplo,
os números primos e seu comportamento. Por isso o matemático Kronecker (7) pôde
dizer: O homem inventou a matemática, mas Deus inventou os números todos: o qeoz ariqmhtizei (8).
Esta descrição de
Cristo me satisfaz, pois permite uma apresentação não contraditória da
combinação paradoxal da existência humana e divina, seu caráter empírico e seu
ser mitológico.
O inexprimível e amorfo
estar capturado não fala de maneira alguma contra a existência do arquétipo,
pois a mera numinosidade do momento já é em si uma das numerosas manifestações
e uma forma primitiva da captura arquetípica, ver kairós, Tao ou (no zen) satori.
Devido à sua transcendência, o arquétipo em si é tão irrepresentável como a
natureza da luz e, por isso, deve ser bem distinguido das ideias arquetípicas
ou do mitologema. Com isso fica preservada a transcendência da premissa
teológica.
Esperando ter
respondido de certa maneira às suas perguntas, permaneço com saudações
cordiais, C. G. Jung.
(1) Resposta
a Jó.
(2) Em
Resposta a Jó, Jung refere-se ao apócrifo etíope “Livro de Henoc”, escrito por
volta do ano 100 a. C. Nele Henoc é chamado de “filho do homem” pelo anjo
revelador.
(3) “Sobre
a sincronicidade”, Eranos Jahrbuch 1951, Zurique, 1952. Vol. 8.
(4) A
edição ampliada de “Sincronicidade como princípio de conexões acausais” foi
publicada, juntamente com o ensaio de W. Pauli, Vol. 8.
(5) O
indistinguível “arquétipo em si” bem como a irrepresentável camada profunda do
inconsciente coletivo têm “uma natureza que não podemos chamar com certeza de
psíquica”. Jung denomina esta esfera transcendente da consciência usando o
adjetivo psicóide, semelhante ao psíquico. Com isso, ele a distingue, por um
lado, dos fenômenos concretos da vida e, por outro, dos processos puramente
psíquicos. Esta diferenciação foi o pressuposto da formulação definitiva do
princípio da sincronicidade. Vol. 8, §368 e 439.
(6) Mundus
archetypus (sinônimo de “unus mundus”) é o mundo como unidade antes de sua
criação e conscientização; “um mundo potencial que significa a razão última e
eterna de todo o ser empírico”, no sentido psicológico: o inconsciente
coletivo. Mysterium Coniunctionis II< § 414s.
(7) Leopold
Kronecker, 1823-1891, matemático alemão.
(8) “Deus
aritmetiza”. Expressão atribuída ao matemático Karl Friedrich Gauss
(1777-1855).
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