Avançar para o conteúdo principal

A uma destinatária não identificada

Estados Unidos, 13 de outubro de 1951.

 

Dear Mrs. N.,

Não é fácil nem simples responder à sua pergunta (1), pois vai depender muito de sua faculdade de compreensão. Por outro lado, sua compreensão depende do desenvolvimento e maturidade de seu caráter pessoal.

Não é possível matar parte de seu “si-mesmo” sem que antes mate a si mesma. Se arruinar a sua personalidade consciente, a assim chamada personalidade do eu, a senhora despoja o si-mesmo de seu verdadeiro objetivo, isto é, de tornar-se real. O objetivo da vida é tornar real o si-mesmo. Com o suicídio, a senhora destrói esta vontade do si-mesmo que a guia através da vida para aquele objetivo final. Uma tentativa de suicídio não afeta a intenção do si-mesmo de tornar-se real, mas pode interromper o seu desenvolvimento pessoal, uma vez que não é explicada. A senhora deveria entender que suicídio é o mesmo que assassinato, pois após o suicídio fica um cadáver, exatamente como num assassinato comum. A unida diferença é que foi a senhora a assassinada. Esta é a razão por que a lei ordinária pune a pessoa que tenta cometer suicídio, e psicologicamente isto é correto também. Por isso, o suicídio não é certamente a resposta adequada.

Enquanto não se der conta da natureza desse impulso muito perigoso, a senhora bloqueia o caminho para um desenvolvimento ulterior, exatamente como a pessoa que pretende cometer um roubo sem saber o que está pretendendo e sem atinar com a implicação ética de tal ato; também ela só pode progredir no desenvolvimento se tomar consciência de sua tendência criminosa. Essas tendências são bastante frequentes, mas nem sempre se concretizam; e dificilmente há alguém que não deva reconhecer, de um modo ou de outro, que ele tem uma sombra escura a segui-lo. Esta é a sina humana. Se assim não fosse, poderíamos ser perfeitos algum dia, o que também poderia ser apavorante. Não deveríamos ser ingênuos sobre nós mesmos e, para não sê-lo, temos de descer a um nível mais modesto de auto-estima.

Esperando ter respondido à sua pergunta, permaneço

Yours sincerely, C. G. Jung.

 

Agradeço muito os honorários. Não há necessidade de outro pagamento.

 

(1) A destinatária, de aproximadamente 47 anos de idade, havia perguntado a Jung, num momento de profunda depressão, se a tentativa de suicídio aos 21 anos de idade, poderia ser matado parte de seu “si-mesmo”.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Ao Dr. Hans A. Illing

Los Angeles (Calif. EUA), 26 de janeiro de 1955.   Prezado Doutor, Enquanto médico, considero a perturbação psíquica (neurose ou psicose) uma doença individual; e assim deve ser tratada a pessoa. No grupo o indivíduo só é atingido na medida em que é membro do mesmo (1). Em princípio isto é um grande alívio, pois no grupo a pessoa é preservada e está afastada de certa forma. No grupo o sentimento de segurança é maior e o sentimento de responsabilidade é menor. Certa vez entrei com uma companhia de soldados numa terrível geleira coberta de névoa espessa. A situação foi tão perigosa que todos tiveram que ficar no lugar onde estavam. Não houve pânico, mas um espírito de festa popular! Se alguém estivesse sozinho ou apenais em dois, a dificuldade da situação não teria sido levada na brincadeira. Os corajosos e experientes tiveram oportunidade de brilhar. Os medrosos puderam valer-se da intrepidez dos mais afoitos e ninguém pensou alto na possibilidade de um bivaque improvisado na ...

Aniela Jaffé (Zurique)

Carta à Aniela Jaffé (Zurique) “Bollingen,  12 de abril de 1949. Prezada Aniela, (...) Sua carta chegou num período de reflexões difíceis. Infelizmente nada lhe posso falar a respeito. Seria demais. Também eu ainda não cheguei ao final do caminho do sofrimento. Trata-se de compreensões difíceis e penosas (1). Após longo vagar no escuro, surgiram luzes mais claras, mas não sei o que significam. Seja como for, sei por que e para que preciso da solidão de Bollingen. É mais necessária do que nunca. (...)            Eu a parabenizo pela conclusão de “Séraphita” (2). Ainda que não tivesse aproveitado em nada a Balzac desviar-se do si-mesmo, gostaríamos de poder fazê-lo também. Sei que haveríamos que pagar mais caro por isso. Gostaríamos de ter um Javé Sabaoth como kurioz twn daimonwn (3). Compreendo sempre mais porque quase morri e vejo-me forçado a desejar que assim tivesse sido. O cálice é amargo. Saudações cordiai...

À Aniela Jaffé

  À Aniela Jaffé Zurique, 26 de dezembro de 1954.   Prezada Aniela, Não sei o que mais admiro, se sua paciência, seu sentido do essencial e sua força descritiva, ou a penetração admiravelmente profunda de Broch no mistério da transformação, a perseverança e coerência dele e, finalmente, a maestria linguística dele (1). Em última instância, devo alegrar-se por não ter tido esta capacidade linguística, pois se a tivesse tido nos anos 1914-1918 (2), meu desenvolvimento posterior teria tomado outro rumo, menos condizente com minha natureza. Apesar disso, Broch e eu tivemos algo em comum: esmagados pela numinosidade das coisas vistas, um envolveu sua visão num nevoeiro impenetrável (ou quase assim) de imagens, enquanto o outro a cobriu com uma montanha de experiências práticas e paralelos históricos. Ambos quiseram mostrar e revelar, mas, por excesso de motivos, ambos ocultaram novamente o inefável e assim abriram novos caminhos laterais para o erro. Aconteceu-nos o mesmo q...