Tel Aviv/Israel
Bollingen, 05 de
janeiro de 1952.
Meu prezado Neumann,
Agradeço muito sua
carta e a maneira como me entende. Isto compensa milhares de mal-entendidos. O
senhor coloca o dedo no ponto certo, um ponto doloroso para mim: eu já não
consigo levar em consideração o leitor médio; é ele que tem de me levar em consideração. Tive de pagar
este tributo ao fato impiedoso de minha idade. Na serena previsão da mais ampla
incompreensão não consegui impor nenhum convencimento e nenhuma captatio benevolentiae, e mesmo o funil
de Nürnberg escapou-se das mãos. Não com minha farda, mas “nu e sem nada devo
descer à sepultura”, com plena consciência do escândalo que provocará a minha
nudez. Mas o que significa isto em comparação à arrogância que tive de reunir
para poder ofender o próprio Deus? Isto me deu maior dor de barriga do que se
tivesse todo o mundo contra mim. Este último fato já não é novidade para mim.
Expressei meu luto e pesar na epígrafe: “Doleo super te frater mi”.
Suas perguntas: Trata-se da imagem
canônica de Deus. Esta é a minha primeira preocupação, e não um conceito de
Deus geral e filosófico. Deus é sempre específico e sempre localmente válido,
caso contrário ele seria ineficaz. Para mim vale a imagem ocidental de Deus,
quer eu concorde intelectualmente com ela ou não. Não faço filosofia da
religião, mas estou impressionado, quase estupefato, e reúno forças. Não há
lugar aqui para a gnose ou para midraxes (2), pois não há nada disso ali
dentro. Com purusha-atmã e com o Tao só meu conhecimento tem algo a ver, mas
não minha viva comoção. Ela é local, bárbara, infantil e abissalmente não
científica.
A “oscilação entre a
formulação teológica e psicológica” é de fato “involuntária”. A sophia é realmente mais simpática para
mim do que o demiurgo, mas não tenho simpatia alguma pela realidade de ambos.
O próprio Deus é uma contradictio in adiecto, por isso
necessita do ser humano para tornar-se Uno (4). A sophia está sempre na frente e o demiurgo sempre atrás. Deus é uma
doença que o ser humano deveria curar. Para esta finalidade Deus entra no ser
humano. Por que ele faria isso, se já possui tudo? Para alcançar o ser humano,
Deus certamente precisa mostrar sua verdadeira forma; caso contrário o ser
humano continuaria eternamente louvando a bondade e a justiça dele, negando-lhe
assim o acesso. Isto só pode acontecer através de Satanás, o que não justifica,
porém, a atividade satânica; caso contrário Deus não seria reconhecido
verdadeiramente.
O “advogado” parece-me
ser sophia ou onisciência. Oceano e
Tétis já não dormem juntos (5). Keter e Malcut estão separados (6), Shekiná
está no exílio; esta é a razão do sofrimento de Deus. O mysterium coniunctionis é um assunto do ser humano. Ele é o nymphagogos do casamento celeste (7).
Como pode um ser humano distanciar-se desse fato? Ele seria então um filósofo
que fala de Deus, mas não com Deus. A
primeira coisa seria fácil e daria ao ser humano uma certeza falsa, mas a
segunda é difícil e por isso extremamente impopular. E foi esta a minha
lastimada sorte, havendo necessidade de uma doença enérgica para quebrar minha
resistência (8). Em toda parte devo estar sob
e não sobre. Qual seria a aparência
de Jó, se ele pudesse ter-se distanciado?
Mesmo que eu fale da
imagem ocidental de Deus, especialmente da protestante, não há textos a que se
pudesse recorrer para uma interpretação mais ou menos confiável. Isto é um
assunto em bloco, não se podendo atirar com um canhão sobre pardais; isto é,
trata-se de uma représentation collective
da qual cada um tem consciência de certa forma.
No tocante à “nigredo”
(9), é certo que ninguém é redimido de um pecado que não cometeu e que ninguém
pode subir ao cume em que já se encontra. Aquela humilhação que cada um sente
já lhe foi dada junto com o caráter. Se procurar seriamente sua totalidade,
entrará inesperadamente no buraco que lhe está destinado, e dessa escuridão
nascerá para ele a luz; mas a luz não pode ser iluminada. Se alguém sente que
está na luz, eu jamais o induziria à escuridão, pois com sua luz ele procuraria
e encontraria em outro lugar algo escuro, o que ele não é de forma alguma. A
luz não pode ver a escuridão que lhe é própria. Mas se ela diminuir e ele
seguir o seu lusco-fusco como seguiu sua luz, então entrará na sua noite. Se a luz não diminuir, ele
seria um louco se não permanecesse nela.
Sua obra Psyche já chegou – muito obrigado – e já
comecei a leitura. Eu lhe escreverei mais tarde sobre isso. Até agora estou bem
impressionado com a exposição e estou gostando.
Jó e Sincronicidade
estão atualmente no prelo. Por ora estou totalmente ocupado, apesar de minha
capacidade de trabalho bastante limitada, em escrever o último capítulo de Mysterium Coniunctionis (11). O livro
terá dois volumes, seguido de um terceiro que contém a Aurora Consurgens (atribuída a Tomás de Aquino) (12), um exemplo da
interpretação recíproca entre cristianismo e alquimia.
Mais uma vez muito
obrigado!
C. G. Jung
(1) Neumann
havia lido o manuscrito de Resposta a Jó e, além de algumas perguntas, escreveu
o seguinte (Carta de 05 de dezembro de 1951): “É um livro que me toca muito;
acho que é o mais belo e profundo de seus livros, podendo-se mesmo dizer que já
não é propriamente um “livro”. Em certo sentido, é uma disputa com Deus, um
desejo semelhante ao de Abraão quando ele falou com Deus por causa da
destruição de Sodoma. Ele é, pessoalmente para mim, um livro contra Deus que
permitiu fossem assassinados 6 milhões de “seu” povo, pois Jó também é Israel.
Com isto não penso “pequeno”; sei perfeitamente que somos o paradigma de toda a
humanidade em cujo nome o senhor fala, protesta e consola. E exatamente a
unilateralidade consciente, inclusive a inexatidão frequente daquilo que o
senhor diz é para mim uma prova interna da necessidade e justiça de seu ataque
– que não é ataque nenhum, como eu bem sei”.
(2) Os midraxes contêm a explicação judaica do
Antigo Testamento e representam uma parte da tradição oral, em contrapartida
aos escritos da Bíblia.
(3) Na segunda parte de Resposta a Jó, a figura da
sophia ou sabedoria de deus
(provérbios de Salomão) desempenha uma função central. Jung a descreve como
“uma espécie de pneuma coeterno, de natureza
feminina, mais ou menos hipostasiado e preexistente à criação” e como “amiga
e companheira de Deus desde tempos imemoriais (...), uma artífice da criação”.
Cf. Resposta a Jó, 1952, em OC, vol. XI, § 609 e 617. A sophia precisa ser entendida também como “advogada”da pessoa
diante de Deus (Jó 19.25). Cf. Resposta a Jó, cap. 2 e 5.
(4) Cf. A. Jaffé, Der Mythos vom
Sinn im Werk von C. G. Jung, p. 137s.
(5) Ilíada,
XIV, v. 300s. Cf. Mysterium Coniunctionis
I, § 18, nota 117.
(6) Keter
(hebraico “coroa”) e malcut (hebraico “reino”) são as sefirá superiores e
inferiores da árvore-sefirot cabalística. Jung pensa provavelmente na separação
de tiferet (hebraico “misericórdia”) e malcult, que é também chamada Shekiná.
Cf. carta a Fischer, de 21 de dezembro de 1944, nota 4.
(7) O
ser humano é o padrinho de casamento, pois no transcurso de sua conscientização
ele une os opostos no si-mesmo, respectivamente na imagem de Deus; em outras
palavras: ele une os lados masculino e feminino da divindade numa unio mystica.
(8) Cf.
carta a Corbin, de 04 de maio de 1953.
(9) Nigredo, negridão, designa o estado inicial do
processo alquímico. No processo de individuação corresponde-lhe o encontro com
os seus próprios lados sombrios.
(10)
Apuleio,
Amor und Psyche. Com um comentário de Erich Neumann: Ein Beitrag zur seelischen Entwiklung des Weibleichen, Zurique,
1952.
(11)
É o capítulo “A conjunção”.
(12)
Marie-Louise von Franz, Aurora
Consurgens (Mysterium Coniunctionis
III), Zurique, 1957.
JUNG, C. G. Cartas: 1946-1955. Vol. 2. Petrópolis: Vozes,
2002, p.208-210.
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