Avançar para o conteúdo principal

Ao Dr. Erich Neumann


Tel Aviv/Israel, 28 de fevereiro de 1952.

Prezado Neumann!

Eu já devia ter-lhe escrito há mais tempo, mas nesse ínterim tive de baixar outra vez ao leito por causa de uma gripe. Aos 77 anos de idade, isto não é uma coisa muito simples, pois é “facilis descensus Averno” (1), mas difícil “revocare gradum”, isto é, os motivos da volta perdem aos poucos sua plausibilidade. Hoje é o primeiro dia em que estou de novo de pé e escrevo-lhe como se costuma fazer num mundo tridimensional. Quero dizer-lhe francamente que gostei muito de seu Amor und Psyche (2). É brilhante e escrito com a mais veemente participação. Acredito entender agora por que, seguindo Apuleio, o senhor deixou que se desenrolasse o destino de Psique e de sua feminilidade nas praaias distantes do primitivo mundo dos heróis. Com o maior escrúpulo e com lapidar precisão o senhor mostrou como este drama, enraizado num mundo primitivo, anônimo e afastado de qualquer capricho pessoal, desenrola-se diante de nossos olhos de forma exemplar, quando Apuleio, imitando Psique, desce aos deuses inferiores e experimenta sua perfeição como Sol (3), atingindo assim a “mais alta instância do masculino”. Este “Sol meridiano” é um triunfo com o qual começa a carreira do herói: a abdicação voluntária diante do “humano e feminino que ficou demonstrada por sua superioridade no amor”.

Parece-me que sua depressão se insere bem no mistério do meio-dia. Para livros ruins, basta que tenham sido escritos. Mas bons livros querem atingir uma realidade mais além e começam a colocar questões cuja resposta é melhor deixá-la a outros. Parece-me que o diálogo já começou. Dez pares de tartarugas (4) não conseguem resistir-lhe. Até mesmo acontecimentos infelizes servem ao melhor se formos bondosos por necessidade interior. Devemos ser apresentados diante de Deus, então algo pelo qual lutamos se tornará verdadeiro. Poucas vezes vi um oráculo mais apropriado. É preciso apenas escutar tranquilamente, então perceberemos o que de nós se espera, se “mantivermos firme o coração” (5).

Paramhansa Yogananda, Autobiografia de um Iogue: 100% puro óleo de coco, começando com 40º à sombra e 100% de umidade, torna-se sempre mais confiável como o melhor guia turístico psicológico para regiões ao sul do Paralelo 16; pressupõe um pouco demais uma disenteria por amebas e uma anemia por malária para tornar mais suportáveis a mudança moral de cenário e a alta frequência de intermezzos miraculosos; conserva-se ao lado de Amy McPherson (6) e perfeitamente semelhante ao metafísico Luna Partk na costa do Pacífico do sul de San Francisco; não é um substituto comum, mas autenticamente hindu para todos os cinco sentidos e oferece passeios garantidos por centenas de anos na grande hinterlândia com constante escurecimento da pré-lândia; torna supérfluas todas as artes ilusórias e oferece tudo o que poderia ser desejado para uma existência negativa; insuperável como antídoto para uma explosão desastrosa da populacao, congestionamento de transito e subnutrição espiritual ameaçadora, tão rica em vitaminas que se tornam supérfluos as albuminas, os carboidratos e outras banalidades semelhantes. Martin Buber (7) poderia encompridar em dois metros as nossas cabeças? Feliz Índia! Tranquilas ilhas-elefantíases, sacudidas de cocos, tchupatties cheirando a óleo quente – ah! Meu fígado já não pode suportar isso! Yogananda preenche a grande lacuna. Mas não gostaria de escreve-lhe um prefácio. É assim que eu sou.

Saudações cordiais e não me leve a mal!

C. G. Jung

(1) Jung escolheu como epígrafe da segunda parte de Psicologia e Alquimia, os versos de Eneida (VI), de Virgílio:

“Fácil é a descida aos Infernos; noite e dia o portão do deus sombrio está aberto; mas o retorno aos ares luminosos do céu se faz por caminhos cheios de provocações, esta é a obra, a labuta”.

(2)  Cf. Carta a Neumann, de 05 de janeiro de 1952, nota 10.

(3)  A história de Amor e Psique é uma inserção no romance de Apuleio (nascido por volta de 125). O asno de ouro; Metamorfoses em que narra sua iniciação nos mistérios de Ísis. A perfeição do mistério é designada como “tornar-se sol” (solificatio).

(4)  No I Ching, hexagrama 42, “O aumento”, lê-se:

“Contudo alguém aumenta.

Dez pares de tartarugas não podem resistir-lhe.

Perseverança constante traz felicidade...”.

(5) No mesmo hexagrama consta ao final:

“Ele não mantém firme o seu coração. Infelicidade!”

(6) Aimée Semple McPherson, 1890-1944, evangelista nascida no Canadá e fundadora da “Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular”, pregadora bem sucedida e de natureza teatral. Morreu de uma dose excessiva de soníferos.

(7)  Jung estava naquela época chateado com o ataque de Buber na revista Merkur; cf. carta a White, de 30 de abril de 1952, nota 5.

JUNG, C. G. Cartas: 1946-1955. Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 216-218.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Aniela Jaffé (Zurique)

Carta à Aniela Jaffé (Zurique) “Bollingen,  12 de abril de 1949. Prezada Aniela, (...) Sua carta chegou num período de reflexões difíceis. Infelizmente nada lhe posso falar a respeito. Seria demais. Também eu ainda não cheguei ao final do caminho do sofrimento. Trata-se de compreensões difíceis e penosas (1). Após longo vagar no escuro, surgiram luzes mais claras, mas não sei o que significam. Seja como for, sei por que e para que preciso da solidão de Bollingen. É mais necessária do que nunca. (...)            Eu a parabenizo pela conclusão de “Séraphita” (2). Ainda que não tivesse aproveitado em nada a Balzac desviar-se do si-mesmo, gostaríamos de poder fazê-lo também. Sei que haveríamos que pagar mais caro por isso. Gostaríamos de ter um Javé Sabaoth como kurioz twn daimonwn (3). Compreendo sempre mais porque quase morri e vejo-me forçado a desejar que assim tivesse sido. O cálice é amargo. Saudações cordiai...

To Dr. Edward A. Bennet

  To Dr. Edward A. Bennet, (1) Londres, 21 de novembro de 1953.   My dear Bennet, Muito obrigado pelo gentil envio do livro de Jones sobre Freud. O incidente à página 348 é correto, mas as circunstâncias em que ocorreu estão desvirtuadas (2). Trata-se de uma discussão sobre Amenófis IV: o fato de ele ter raspado dos monumentos o nome de seu pai e colocado o seu próprio; segundo modelo consagrado, isto se explica como um complexo negativo de pai e, devido a ele, tudo o que Amenófis criou – sua arte, religião e poesia – nada mais foi do que resistência contra o pai. Não havia notícias de que outros faraós tivessem feito o mesmo. Mas esta maneira desfavorável de julgar Amenófis IV me irritou e eu me expressei de maneira bastante vigorosa. Esta foi a causa imediata do desmaio de Freud. Ninguém nunca me perguntou como as coisas realmente aconteceram; em vez disso faz-se apenas uma apresentação unilateral e deformada de minha relação com ele. Percebo, com grande interesse, q...

To Dr. Michael Fordham (1)

Londres, 18 de junho de 1954.   Dear Fordham, Sua carta traz más notícias; senti muito que não tenha conseguido o posto no Instituto de Psiquiatria (2), ainda que seja um pequeno consolo para o senhor que tenham escolhido ao menos um de seus discípulos, o Dr. Hobson (3). Depois de tudo, o senhor se aproxima da idade em que a gente deve familiarizar-se com a dolorosa experiência de ser superado. O tempo passa e inexoravelmente somos deixados para trás, às vezes mais e às vezes menos; e temos de reconhecer que há coisas além de nosso alcance que não deveríamos lamentar, pois esta lamentação é um remanescente de uma ambição por demais jovem. Nossa libido continuará certamente querendo agarrar as estrelas, se o destino não tornasse claro, além de qualquer dúvida razoável, que devemos procurar a perfeição dentro e não fora... infelizmente! Sabemos que há muito a melhorar no interior da pessoa, de modo que devemos agradecer à adversidade quando ela nos ajuda a reunir a energia ...