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To Mr. C. H. Josten


To Mr. C. H. Josten (1)

Curator of the Ashmolean Museum

Oxford, 06 de abril de 1952.

 

Dear Sir,

Muito obrigado por me deixar ver os sonhos de Ashmole (2). Uma série dessas é realmente única. É preciso retroceder até o século terceiro depois de Cristo para encontrar algo semelhante, ou seja, as visões-sonhos de Zósimo de Panópolis. Estes são induvitavelmente alquimistas, ao passo que os sonhos de Ashmole nada têm de alquimistas, ao menos numa visão superficial. Mas são de grande interesse enquanto contêm um problema que era de muita importância na geração imediatamente anterior ao tempo de Ashmole: o chamado “mysterium coniunctionis”, apresentado no documento literário de Christian Rosencreutz, Chymische Hochzeit, 1616. Constitui também o fundamento de Fausto, de Goethe, e um dos itens mais importantes da “Speculativa Philosophia”, de Gerardo Dorneo (final do século XVI, impresso em Theatrum Chemicum (3), vol. I, 1602).

O “mysterium” alcança seu ápice no sonho de 29 de dezembro de 1646 (4). A peripécia acontece no sonho de 1º de março de 1647 (5) e a catástrofe, no sonho de 16 de maio de 1647 (6). Os sonhos subsequentes mostram a virada do lado feminino para o masculino, isto é, da tentativa da coniunctio s. compositio para a supressão do fator feminino em favor da masculinidade unilateral. Isto corresponde a uma total desconsideração do lado “esquerdo” (7), isto é, do inconsciente, e também à restauração completa do estado anterior da consciência. descrevemos este processo como uma intrusão dos conteúdos inconscientes no mundo consciente de um indivíduo. Ele começa em 11 de setembro de 1645 (8): na nona casa = uma personificação da “sapientia” alquímica (paralelo da “sophia” gnóstica). Todos os sonhos eróticos e semi-eróticos subsequentes visam a uma coniunctio com o feminino, isto é, com o lado inconsciente (chamado “anima”). Curiosamente, o “noivo” é sempre também a cifra (9) escolhida para o próprio Ashmole; e isto é muito correto, porque ela é seu “mistério”.

Em 1º de março de 1647, um “jovem” o envenena, ou seja, é ele mesmo enquanto pessoa mais jovem, menos experiente, inferior a ele, que insinua uma ideia mais jovem, mais masculina, contra uma atitude mais velha, mais sábia, tendente a integrar seus pendores mais “femininos” com o propósito de completar o si-mesmo (“processo de individuação”). Este é expresso no sonho de 21 de junho de 1646 pelo paraíso no polo norte, pelas 4 fontes (quaternidade) e pela “capela de Nossa Senhora” (10); também aparece no sonho de 29 de dezembro de 1646: “todos os sentimentos de meu amor terminam em ti”, isto é, na anima-sapientia. No polo norte mora a “cor Mercurii”. Ashmole descreve aqui uma “mandala”, o conhecido símbolo do si-mesmo. (Todas as complicações necessárias e todo o material comprovador o senhor pode encontrá-los em meu livro Psicologia e alquimia, 1944, e em Simbolismo do espírito, 1950, aqui principalmente sobre (11). Sobre “norte”, cf. meu livro Aion, 1951).

Por causa da falta completa de material pessoal, nada posso dizer sobre o aspecto personalístico dos sonhos. Também não seria mais do que um pouco pessoal, ou “chronique scanaleuse humana, demasiadamente humana” (12), nada interessante. Restringi-me por isso ao aspecto exclusivamente arquetípico e impessoal. Aqui temos à nossa disposição amplo material comparativo e bastante conclusivo.

Todo o episódio do sonho retrata de maneira bem clara a experiência de uma invasão “inconsciente” para compensar uma atitude masculina um tanto impulsiva e bastante unilateral, característica dos séculos XVI e XVII  nos países nórdicos. Um documento paralelo na Itália é a famosa Ipnerotomachia de Polifilo (século XV), com uma psicologia bem semelhante. (Cf. o livro de L. Fierz-David: Der Liebestraum des Poliphilo, 1947, Zurique).

Eu lhe dei apenas um rápido esboço do que se poderia fizer dos sonhos de Ashmole. Há muitos detalhes que não abordei aqui. Para isso seria necessário escrever meio livro. Gostaria apenas de chamar sua atenção para o paralelo de Fausto: no começo da série um número de mulheres simboliza a aproximação do inconsciente; ele é incapaz de estabelecer uma relação com a parceira feminina (seu lado inconsciente, isto é sua “anima”), então ele é envenenado por sua sombra (na alquimia: “familiaris”, via de regra, no Fausto Mefisto), e através da morte, homicídio e fraude recebe de volta sua atitude masculina anterior com suas ambições: honra e riqueza. Outra solução teria sido possível até mesmo naqueles tempos não psicológicos, se Ashmole tivesse observado cuidadosamente as regras éticas bem como a “Philosophia Meditativa” da alquimia. Parece que a publicação do Theatrum Chemicum Britannicum (13) não foi a resposta certa. Contudo, a série de sonhos foi um episódio que poderia ter tido outro efeito se fosse repetido mais tarde em sua vida.

Tratei desse problema clássico da alquimia num livro específico, Mysterium Coniunctionis, que ainda não foi publicado. Mas Psicologia e alquimia lhe dá ao menos uma orientação geral.

Poderia informar-me algo sobre Mr. Lilly? (14) Era ele uma espécie de feiticeiro? E sobre o “Negative Oath”? (15) Eu nada sei sobre isso.

Mais uma vez obrigado por sua gentileza!

Yours sincerely,

C. G. Jung

P.S. O senhor vai publicar os sonhos? Seria um material muito interessante para psicólogos como eu.

 

(1) C. H. Josten, Curator do Museu de História da Ciência, Old Ashmolean Building, Oxford.

(2) Josten estava preparando naquela época uma edição crítica dos escritos e notas biográficas do arqueólogo inglês Elias Ashmole (C. H. Josten, Elias Ashmole, 1617-1692. His autobiographical and historical notes, his correspondence, and other contemporary sources relating to his life and work, with a biographical introdution, 5 vols, Oxford 1966). Ashmole foi o fundador do Ashmole Museum de Oxford (1683). As nota biográficas continham em torno de 40 sonhos dos anos 1645-1650, que o Dr. Josten enviou a Jung.

(3) Theatrum Chemicum, coletânea de tratados alquímicos em 6 volumes. Os três primeiros foram publicados em Ursel 1602, os demais em Estrasburgo 1613, 1622 e 1661.

(4) “At night she dreamed /that I had written something round, and she was to fill it up in the middle /thereupon I wrote this in a ring of paper / All my affections terminate in thee / and she wrote a verse in the middle”. Em sua carta de 29.04 Josten explicou que este sonho não era de Ashmole, mas de Mrs. March, sua namorada na época, mas Jung não se deu conta disso.

(5) “This night (...) I dreamed I had poisoned myself with eating poison in with butter / that a young man had given me…”

(6) “I dreamed that Jonas Moore was dead /and died suddenly /upon which I much lamented”. Trata-se provavelmente de um amigo de Ashmole.

(7) O sonho de 10 de dezembro de 1647: “This night I dreamed that my left hand was suddenly rotted off”.

(8) A primeira anotação de Ashmole diz: “Sept. 11, 1645: About 6: in the morning I dreamed / and from thenceforth began to observe them. Then did lady of the 9: house of this revolution come to the 18.22 of”.

(9) Em algumas anotações de sonhos, Ashmole designa-se com o signo astrológico de Mercúrio. Segundo informação do Dr. Josten (carta de 29.04.1952), Ashmole havia estudado astrologia e, como Mercúrio e Sol, no signo astrológico de Mercúrio em Gêmeos, estavam na primeira casa de seu horóscopo, este planeta tinha importância especial para ele. Ele inseriu o signo de Mercúrio no brasão de suas armas e denominou a si mesmo em suas publicações alquímicas como “Mercuriophilus Anglicus”.

(10)                   “Morning that I was near paradise which seemed to be toward the North pole / and the 4 springs issued out of a Hill upon which was a chapel erected to our lady Mary / but I could not become nearer but 4 or 5 miles because of the cold and frost”.

(11)                   Cf. “O espírito de Mercúrio” também OC, Vol. XIII.

(12)                   Na carta de 29.04.1952, Dr. Josten escrevia entre outras coisas: “Your interpretation of Ashmole’s dreams corresponds in a remarkable way with the events in Ashmole’s life during the same period. (…) The dreams are surrounded by much information which, as you rightly presume, is mostly ‘chronique scandaleuse’”.

(13)                   Theatrum Chemicum Britannicum, com o subtítulo: Containing Several Poetical Pieces of Our Famous English Philosophers, Who Have Written the Hermetique Mysteries in Their Owne Anciente Language. Collected with annotatitons by Elias Ashmole. Londres 1652.

(14)                   William Lilly, 1602-1681, astrólogo e “mágico”. Dr. Josten escreveu sobre ele (carta de 29.04.1952): “...he dabbled in magic, though in his autobiography He tries to disclaim this”. Lilly era um dos amigos mais íntimos de Ashmole. Em 2 de janeiro de 1647, este anotou o seguinte: “At night I dreamed / that Mr. Lilly had assured me, He would proucre me by his art”.

(15)                   Sob Oliver Cromwell, monarquistas acusados fizeram o juramento (negative) de nunca mais irem a campo contra o parlamento, para evitar assim o confisco de seus bens.

 

 

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