A Horst Scharschuch
Heidelberg, 01 de setembro de 1952.
Prezado senhor,
É fora de dúvida que o inconsciente chega
à superfície na arte moderna e destrói com sua dinâmica a organização própria da
consciência (1). Este processo é um fenômeno que pode ser observado de forma
mais ou menos pronunciada em todos os tempos: assim, por exemplo, sob condições
primitivas, quando a vida habitual, regulada por leis rígidas, é de repente
quebrada por situações aterradoras, ligadas a uma desordenada ausência de leis
nos eclipses do Sol ou da Lua, ou na forma da licenciosidade cúltica como, por
exemplo, nas orgias dionisíacas, prescritas pelo culto; e entre nós na Idade
Média, nos mosteiros, com a inversão da ordem hierárquica e ainda hoje no
carnaval. Esta quebra episódica ou costumeira da ordem deve ser vista como
medidas psico-higiênicas que desafogam de tempos em tempos as forças caóticas e
reprimidas.
Nos dias de hoje isto acontece obviamente
na mais ampla escala, porque os ordenamentos culturais reprimiram por tempo
demais e com muita violência os desordenamentos primitivos. Se pudermos
entender a arte prospectivamente, como eu acredito que se possa, então ela
anuncia claramente o surgimento de forças dissolventes da desordem. Ela desafoga
e elimina ao mesmo tempo a compulsão da ordem. Eu estou propenso a entender que
aquilo que vai surgir será o contrário da arte, pois falta-lhe ordem e forma. O
caos que vem à superfície pede novas ideias simbólicas de conjunto que abarcam
e expressam não só os ordenamentos existentes até agora, mas também os conteúdos
essenciais do desordenado. Estas ideias teriam um efeito mágico por assim
dizer, pois pretendem esconjurar as forças destrutivas da desordem, como foi o
caso, por exemplo, no cristianismo e em todas as religiões em geral. Segundo antiga
tradição, esta magia é denominada magia branca; ao passo que a magia negra
exalta os impulsos destrutivos como única verdade válida em oposição à ordem
até agora existente e, além disso, compele-os a servir ao indivíduo em oposição
à coletividade. Os meios empregados para isso são primitivos, fascinantes, ou ideias
e imagens aterradoras, afirmações incompreensíveis à inteligência comum,
palavras e configurações estranhas, ritmos primitivos, soar de tambores e
coisas assim. Na medida em que a arte moderna usa esses meios como fins em si
mesmos e com isso aumenta o estado de desordem, pode ser denominada diretamente
como magia negra.
O demoníaco, ao contrário, baseia-se no
fato de que há forças inconscientes de negação e destruição e de que o mal é
real. Reconhece-se por exemplo o demoníaco não só porque práticas de magia
negra são possíveis mas também porque possuem um efeito sinistro, e poderíamos
supor até que o praticante da magia negra estivesse possuído por um demônio. A magia
de Hitler, por exemplo, consistia em dizer oportunamente o que ninguém queria
expressar abertamente, porque o considerava de qualidade duvidosa e inferior (o
ressentimento contra os judeus, por exemplo). O demoníaco de Hitler esta no
fato de que seu método era de uma eficácia medonha e de que ele mesmo se tornou
vítima clara do demônio, que tomou posse total dele.
O estudo dessas questões deveria começar
naturalmente com o conhecimento completo das práticas primitivas de magia. Eu o
aconselharia a ler o livro de Mircea Eliade, Le chamanisme, bem como
Philosophia Occulta, de Agrippa von Nettesheim (3), e alguns escritos de
Paracelso como, por exemplo, magia da simpatia. Encontrará ali também a mesma
espécie de neologismos sugestivos que caracterizam a filosofia alemã atual: as
palavras incompreensíveis, sinais e gestos, etc. Talvez possa aproveitar alguma
coisa de meu pequeno ensaio Paracelsica (1940). Vale ainda lembra a teoria de
Alberto Magno (4), segundo a qual quem se entrega totalmente à sua emoção violenta
e nesse estado deseja o mal pode provocar um efeito mágico. Isto é a
quintessência da magia primitiva e dos fenômenos de massa correspondentes da época
moderna como, por exemplo, o nacionalssocialismo, o comunismo, etc. Foi com razão
que Ernst Robert Curtius (5) chamou certa vez a obra do clássico James Joyce,
Ulysses, de “infernal”. Receio que esta qualificação possa ser aplicada em
larga escala a todas as artes modernas.
Com elevada consideração, C. G. Jung.
(1)O destinatário havia perguntado sobre
os aspectos do “mágico” e do “demoníaco” na arte moderna, bem como sobre a
atitude da estética moderna em relação ao inconsciente.
(2)Mircea Eliade, Le chamanisme et les
techniques archaïques de l’extase, Paris, 1951.
(3)Henricus Cornelius Agrippa von
Nettesheim, De oculta filosofia libri três, Colônica, 1533. Agrippa já havia
escrito o livro em 1510. Como contivesse uma defesa da magia, só pôde ser publicado
20 anos depois, devido à ameaça da Inquisição.
(4)Alberto Magno, nascido por volta de
1193 em Colônia, falecido em 1280. Dominicano e filósofo escolástico. Foi ele
que abriu o caminho do Aristotelismo no Ocidente cristão e foi professor de
Tomás de Aquino. Devido à sua cultura incomum, foi denominado “doctor
universalis”. Foi canonizado em 1931. Quanto à sua concepção da magia, cf.
Naturerklärung und Psyche, p. 34s; Obras Completas, Vol. 8, § 859.
(5)Ernst Robert Curtius, 1886-1956,
romanista. Em seu livro James Joyce und sein Ulysses, 1929, fala de “uma obra
do Anticristo”. Cf. Mysterium Coniunctionis II, § 120.
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