Riehen-Basileia, 23 de setembro de 1952.
Prezada senhorita,
A senhorita tem razão: em minha última
carta (1) falei muito mais do que me permitia o seu sermão. Os teólogos me
criticam tanto e me interpretam tão mal que seria antinatural que eu às vezes não
agredisse também. Mas não foi nada pessoal contra a senhorita.
Se eu acentuo a evolução histórica do
cristianismo, isto não significa que eu despreze o que de novo ele traz. Gostaria
apenas de suavizar a transição para que se possa entender o sentido da
mensagem. As pessoas são tão diferente! Há poucos dias, um pastor suico mais
idoso escreveu-me uma comovente carta de agradecimento, dizendo que os meus
escritos lhe abriram finalmente o acesso à Bíblia. Nunca esperei semelhante
coisa. Mas isto indica que a linguagem figurada da Bíblia não é compreendida
nem mesmo por um pastor. Os arquétipos estão presentes nem toda parte, mas há
uma resistência geral contra esta “mitologia”. Por isso também o evangelho deve
ser “desmitologizado”.
Trata-se, sem dúvida, do sentido e
conteúdo dos mitologemas. Certamente “Cristo” é um novo sentido do mito para o
homem da Antiguidade. Mas se nós, após dois mil anos, ainda continuamos a
acentuar a novidade, devemos mostrar também em que consiste este novo para nós,
que nunca havíamos ouvido ou entendido. Então podemos sentir-nos de novo como
os cristãos primitivos. Mas ouvimos sempre as mesmas palavras antigas e, como
Bultimann, ficamos enjoados de mitologia. Até que ponto a mensagem é nova para
nós? Até que ponto Cristo nos é desconhecido? Que ele está aqui como pessoa
viva, isenta de nossa arbitrariedade, isto já ouvimos há muito tempo e todo o
resto também. Há necessidade aqui de um novo ponto de partida, que não se pode
encontrar sem estabelecer um novo sentido. A mensagem só vive se criar novo
sentido. Eu não acredito que ela esteja esgotada, mas talvez a teologia esteja.
Como explica a senhorita ao seu ouvinte que a morte e ressurreição de Cristo são
a sua morte e ressurreição? Não está esquanimizando Cristo e o si-mesmo da
pessoa, ponto de vista que é criticado em mim? Se a morte e ressurreição de
Cristo significam a minha morte e ressurreição, isto é, se a=b, então também
b=a. Está implícito no evangelho que Cristo = Si-mesmo nunca foi tirada
claramente. Isto é uma atribuição de sentido novo, um grau além na encarnação ou
da concretização de Cristo. A senhorita está chegando perto dessa concepção a
passos rápidos e, até mesmo, já a pronunciou. E assim ele se torna uma experiência
psicologicamente formulável: o Si-mesmo é uma pessoa viva e sempre presente. É um
conhecimento sobre o qual concordam a filosofia hinduísta (que corresponde à
teologia ocidental), o budismo, o taoísmo, uma certa orientação mística do
islamismo e o cristianismo. A esta ilustra assembleia pertence também a minha
psicologia, como colaboração modesta, e a senhorita formulou, do ponto de vista
cristão, o princípio psicológico essencial nas palavras acima citadas (2). Graças
a esta experiência e conhecimento interiores, a figura de Cristo tornou-se viva
para a senhorita e significa uma verdade última e inabalável, porque procede de
um tipo coletivo, universalmente disseminado, o aceiropoihtoz
(3). Com
isso deveria alegrar-se todo cristão, mas temo que os teólogos façam cara feia.
Eu, no entanto, me alegro que o inconsciente tenha colocado em sua boca o
verdadeiro sentido: Qarreite mustai tou qeou sesvsmenou (4). Eu escrevi
em detalhes sobre isso, como a senhorita saber, em meus livros Resposta a Jó e
Aion, entre outros.
É claro que não sou da opinião de que se
devam pregar vivências que só o indivíduo pode ter. sei que o sermão é um
assunto premente para o pastor e que ele deve realizá-lo da melhor maneira
possível. Mas sua alma talvez seja um assunto ainda mais premente. É dela que
falo. Neste sentido há uma fuga geral para fora, um torcer o nariz quanto à “psicologia”,
uma ignorância assustadora dela e um desleixo com a cura animarum. Em vez
disso, vai-se às missões entre os pagãos. Os primeiros mensageiros foram para o
grandes centros de civilização da Antiguidade, mas não às nascentes do Nilo. Isto
aconteceu só com o monarquismo que nasceu de um desgosto pelo mundo civilizado,
com o qual não se chegava a um acordo. Bom exemplo disso é Albert Schweitzer,
que teria sido muito necessário na Europa, mas que preferiu ser um salvador
comovente de selvagens negros e pendurou sua teologia na parede. Só temos uma justificação
para missionar quando chegamos aqui a um acordo conosco mesmos, caso contrário
só espalhamos a nossa própria doença. Como está a situação do reino de Deus na
Europa? Nem mesmo os selvagens são tão estúpidos para não verem nossas mentiras.
Desavergonhada e infantilmente difundimos nossos cismas irreconciliáveis entre
nossos “irmãos” negros e pregamos a eles o pacifismo, a irmandade, o amor ao próximo,
etc., etc., através da boca de evangélicos, luteranos, High Church, não-conformistas,
batistas, metodistas, católicos, todos decididos até a morte a não se entender
com o irmão. Cumprimos assim a vontade de Deus?
Estas reflexões me chegam espontaneamente
quando a senhorita fala de um compromisso total, por exemplo, com a missão. A gente
pode comprometer-se naturalmente com tudo, até com o nacionalssocialismo, como
a senhorita viu. Mas se este objetivo, considerado “certo” por nós, corresponde
também à vontade de Deus, é outra questão. Sobre isso nos informa apenas uma
vez muito suave dentro de nós. E não raras vezes ela contradiz os nossos ideais
coletivos (veja as experiências vocacionais dos profetas).
Parece-me que um dos maiores obstáculos ao
nosso desenvolvimento psíquico é não dar atenção à voz interior, mas preferimos
um ideal coletivo e convencional, que nos torna insensíveis aos danos causados
à nossa própria casa e nos dá o direito de dar bons conselhos ao próximo. Quando
se participa de uma assim chamada grande causa, podemos facilmente recorrer à
desculpa de não precisarmos melhorar algo em nossa psique – afinal tao pequena
e insignificante! Mas é então que o bom meio na mão do homem errado produz
perversidades, e nisso ninguém pensa. Não acha a senhorita que teríamos mais
razoes de nos preocupar com a situação do cristianismo na Europa do que com
medidas higiênicas em Lambaréné? A primeira coisa é naturalmente muito
impopular, ao passo que a segunda é idealismo exemplar que garante uma boa consciência
de primeira classe e que não prejudica em parte alguma o sentimento dominador
do homem branco.
Por favor, não tome minhas observações em
sentido pessoal, mas considere-as o que elas são; notas de rodapé à questão
religiosa da atualidade.
Sinceramente seu, C. G. Jung.
P. S. Devo-lhe uma explicação por que a
bombardeio com cartas tão longas e desagradáveis. Por um lado, sou obrigado a
ouvir tanta besteira e negativismo contra o cristianismo e, por outro, sou tão
grotescamente mal-entendido pelos teólogos que faço o possível para levar minha
crítica a um lugar onde posso pressupor boa vontade, isto é, uma atitude
verdadeiramente cristã que tenha algo a ver com amor ao próximo. Além disso,
sua última carta me deu ensejo de mostrar-lhe o quanto as suas concepções religiosas
estão próximas às minhas.
(1)Cf. cara a Dorothee Hoch, de 03 de
junhlho de 1952.
(2)Literalmente: “Creio que (...) devemos
dizer aqui pura e simplesmente ao povo que a morte e a ressurreição de Cristo é
a morte e a ressurreição deles” (carta de Hoch, de 13 de setembro de 1952).
(3)Não feito por mãos humanas (cf. Marcos
14.58).
(4)”Sede confortados, iniciados nos
mistérios de Deus salvador” (Firmicus Maternus, século IV, De errore profanarum
religionum, 22).
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