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À senhorita Pastora Dorothee Hoch

À senhorita Pastora Dorothee Hoch

Riehen-Basileia, 23 de setembro de 1952.

 

Prezada senhorita,

A senhorita tem razão: em minha última carta (1) falei muito mais do que me permitia o seu sermão. Os teólogos me criticam tanto e me interpretam tão mal que seria antinatural que eu às vezes não agredisse também. Mas não foi nada pessoal contra a senhorita.

Se eu acentuo a evolução histórica do cristianismo, isto não significa que eu despreze o que de novo ele traz. Gostaria apenas de suavizar a transição para que se possa entender o sentido da mensagem. As pessoas são tão diferente! Há poucos dias, um pastor suico mais idoso escreveu-me uma comovente carta de agradecimento, dizendo que os meus escritos lhe abriram finalmente o acesso à Bíblia. Nunca esperei semelhante coisa. Mas isto indica que a linguagem figurada da Bíblia não é compreendida nem mesmo por um pastor. Os arquétipos estão presentes nem toda parte, mas há uma resistência geral contra esta “mitologia”. Por isso também o evangelho deve ser “desmitologizado”.

Trata-se, sem dúvida, do sentido e conteúdo dos mitologemas. Certamente “Cristo” é um novo sentido do mito para o homem da Antiguidade. Mas se nós, após dois mil anos, ainda continuamos a acentuar a novidade, devemos mostrar também em que consiste este novo para nós, que nunca havíamos ouvido ou entendido. Então podemos sentir-nos de novo como os cristãos primitivos. Mas ouvimos sempre as mesmas palavras antigas e, como Bultimann, ficamos enjoados de mitologia. Até que ponto a mensagem é nova para nós? Até que ponto Cristo nos é desconhecido? Que ele está aqui como pessoa viva, isenta de nossa arbitrariedade, isto já ouvimos há muito tempo e todo o resto também. Há necessidade aqui de um novo ponto de partida, que não se pode encontrar sem estabelecer um novo sentido. A mensagem só vive se criar novo sentido. Eu não acredito que ela esteja esgotada, mas talvez a teologia esteja. Como explica a senhorita ao seu ouvinte que a morte e ressurreição de Cristo são a sua morte e ressurreição? Não está esquanimizando Cristo e o si-mesmo da pessoa, ponto de vista que é criticado em mim? Se a morte e ressurreição de Cristo significam a minha morte e ressurreição, isto é, se a=b, então também b=a. Está implícito no evangelho que Cristo = Si-mesmo nunca foi tirada claramente. Isto é uma atribuição de sentido novo, um grau além na encarnação ou da concretização de Cristo. A senhorita está chegando perto dessa concepção a passos rápidos e, até mesmo, já a pronunciou. E assim ele se torna uma experiência psicologicamente formulável: o Si-mesmo é uma pessoa viva e sempre presente. É um conhecimento sobre o qual concordam a filosofia hinduísta (que corresponde à teologia ocidental), o budismo, o taoísmo, uma certa orientação mística do islamismo e o cristianismo. A esta ilustra assembleia pertence também a minha psicologia, como colaboração modesta, e a senhorita formulou, do ponto de vista cristão, o princípio psicológico essencial nas palavras acima citadas (2). Graças a esta experiência e conhecimento interiores, a figura de Cristo tornou-se viva para a senhorita e significa uma verdade última e inabalável, porque procede de um tipo coletivo, universalmente disseminado, o aceiropoihtoz (3). Com isso deveria alegrar-se todo cristão, mas temo que os teólogos façam cara feia. Eu, no entanto, me alegro que o inconsciente tenha colocado em sua boca o verdadeiro sentido: Qarreite mustai tou qeou sesvsmenou (4). Eu escrevi em detalhes sobre isso, como a senhorita saber, em meus livros Resposta a Jó e Aion, entre outros.

É claro que não sou da opinião de que se devam pregar vivências que só o indivíduo pode ter. sei que o sermão é um assunto premente para o pastor e que ele deve realizá-lo da melhor maneira possível. Mas sua alma talvez seja um assunto ainda mais premente. É dela que falo. Neste sentido há uma fuga geral para fora, um torcer o nariz quanto à “psicologia”, uma ignorância assustadora dela e um desleixo com a cura animarum. Em vez disso, vai-se às missões entre os pagãos. Os primeiros mensageiros foram para o grandes centros de civilização da Antiguidade, mas não às nascentes do Nilo. Isto aconteceu só com o monarquismo que nasceu de um desgosto pelo mundo civilizado, com o qual não se chegava a um acordo. Bom exemplo disso é Albert Schweitzer, que teria sido muito necessário na Europa, mas que preferiu ser um salvador comovente de selvagens negros e pendurou sua teologia na parede. Só temos uma justificação para missionar quando chegamos aqui a um acordo conosco mesmos, caso contrário só espalhamos a nossa própria doença. Como está a situação do reino de Deus na Europa? Nem mesmo os selvagens são tão estúpidos para não verem nossas mentiras. Desavergonhada e infantilmente difundimos nossos cismas irreconciliáveis entre nossos “irmãos” negros e pregamos a eles o pacifismo, a irmandade, o amor ao próximo, etc., etc., através da boca de evangélicos, luteranos, High Church, não-conformistas, batistas, metodistas, católicos, todos decididos até a morte a não se entender com o irmão. Cumprimos assim a vontade de Deus?

Estas reflexões me chegam espontaneamente quando a senhorita fala de um compromisso total, por exemplo, com a missão. A gente pode comprometer-se naturalmente com tudo, até com o nacionalssocialismo, como a senhorita viu. Mas se este objetivo, considerado “certo” por nós, corresponde também à vontade de Deus, é outra questão. Sobre isso nos informa apenas uma vez muito suave dentro de nós. E não raras vezes ela contradiz os nossos ideais coletivos (veja as experiências vocacionais dos profetas).

Parece-me que um dos maiores obstáculos ao nosso desenvolvimento psíquico é não dar atenção à voz interior, mas preferimos um ideal coletivo e convencional, que nos torna insensíveis aos danos causados à nossa própria casa e nos dá o direito de dar bons conselhos ao próximo. Quando se participa de uma assim chamada grande causa, podemos facilmente recorrer à desculpa de não precisarmos melhorar algo em nossa psique – afinal tao pequena e insignificante! Mas é então que o bom meio na mão do homem errado produz perversidades, e nisso ninguém pensa. Não acha a senhorita que teríamos mais razoes de nos preocupar com a situação do cristianismo na Europa do que com medidas higiênicas em Lambaréné? A primeira coisa é naturalmente muito impopular, ao passo que a segunda é idealismo exemplar que garante uma boa consciência de primeira classe e que não prejudica em parte alguma o sentimento dominador do homem branco.

Por favor, não tome minhas observações em sentido pessoal, mas considere-as o que elas são; notas de rodapé à questão religiosa da atualidade.

Sinceramente seu, C. G. Jung.

 

P. S. Devo-lhe uma explicação por que a bombardeio com cartas tão longas e desagradáveis. Por um lado, sou obrigado a ouvir tanta besteira e negativismo contra o cristianismo e, por outro, sou tão grotescamente mal-entendido pelos teólogos que faço o possível para levar minha crítica a um lugar onde posso pressupor boa vontade, isto é, uma atitude verdadeiramente cristã que tenha algo a ver com amor ao próximo. Além disso, sua última carta me deu ensejo de mostrar-lhe o quanto as suas concepções religiosas estão próximas às minhas.

 

(1)Cf. cara a Dorothee Hoch, de 03 de junhlho de 1952.

(2)Literalmente: “Creio que (...) devemos dizer aqui pura e simplesmente ao povo que a morte e a ressurreição de Cristo é a morte e a ressurreição deles” (carta de Hoch, de 13 de setembro de 1952).

(3)Não feito por mãos humanas (cf. Marcos 14.58).

(4)”Sede confortados, iniciados nos mistérios de Deus salvador” (Firmicus Maternus, século IV, De errore profanarum religionum, 22).

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