Ao Prof. Oskar Schrenk
Paris, 08 de dezembro de 1952.
Prezado professor!
Muito me alegrou e interessou a sua carta
(1). Naturalmente sua “reação” me impressionou bastante. Estava bem no sentido
mais profundo de seu sonho que o senhor o tivesse contado a mim. O “professor”
revela-lhe o segredo de sua “filha”. Talvez eu já deva chamar-lhe a atenção neste
sonho para um pequeno erro de método, mas de graves consequências em sua interpretação.
(Ele desempenha um papel maior no sonho seguinte). A crítica mais negativa do
sonho em seu “produto” pode estar ligada a isto (2).
O ponto de partida consciente do sonho é a
leitura de meu livro ou uma impressão emocional correspondente, que evoca a imagem
de seu antigo professor. O sonho vai de mim para o professor G. que ocupa toda
a sua memória. G. não escreveu nenhum Jó, não tem nenhuma filha, mas é um
professor ideal. Contra toda a expectativa, o sonho me silenciou e me substitui
de certa forma por G.
Por que faz o sonho semelhante arranjo? Por
que diz ele “águia” (3) em vez de Schrenk ou Jung? O sonho quer dizer
claramente Professor G. e águia (4). Só nós achamos que deveria significar
propriamente Schrenk ou Jung. No último caso, o senhor já foi corrigido por seu
colega, mas ele cai no mesmo erro de querer saber mais do que o sonho. Trata-se
aqui de desconhecimento dos fatos. É como se um médico tivesse encontrado açúcar
na urina de seu paciente e dissesse: “O açúcar significa na verdade albumina”,
e então lhe desse remédios par nefrite, baseado em mera suposição. Este erro
primário também já o cometeu o próprio Freud. É o caminho mais fácil de
escamotear o sentido do sonho.
Procuramos obviamente figuras em nosso
mundo empírico para explicar os sonhos. Mas deveríamos primeiro estabelecer com
todo cuidado que o sonho é um fenômeno natural, que não podemos interpretar com
facilidade, caso contrário praticamos alquimia em vez de química. Como o
segundo sonho quer obviamente significar águia e como nem o senhor, nem eu
somos águias que voam em círculos sobre campos de concentração, esta interpretação
é arbitrária. Mas, o que é águia então?
A águia é entendia aqui como um fator de
ameaça que deveria ser “derrubado”. Ela é algo que tudo vê, que espreita do
alto sua presa, com olhos telescópicos a que nada escapa. É compreensível que
este olhar seja especialmente incômodo ao judeu racionalista e ateu, pois ele
lhe recorda os olhos de Javé “que percorrem toda a terra” (5) (passagem
mencionada em meu Jó). A águia “agarra” e “leva para o alto” (Ganimedes e a
águia de Zeus). Seu colega é lembrado de que ainda está preso num campo
intelectualista e de que sente até mesmo seu libertador como inimigo. Trata-se
aqui de um arquétipo e não do autor Jung. O mesmo se dá no caso do professor e
ainda mais no caso da filha. Insinua-se aqui a figura da Sofia, repartida entre
o “velho sábio” e sua filha, que representa a virgem alma. Ambos os sonhos não correm
de volta para a impressão diurna, mas para frente, para dentro do mundo de figuras
arquetípicas vivas, que já esquecemos aparentemente, ou de fato, há muito
tempo, mas que sempre estão presentes, bastando que pensemos cientificamente e não
nos contentemos com meras suposições.
Por favor, não considere estas observações
como crítica de um mestre-escola; acreditei apenas que poderiam servir-lhe para
entender minha psicologia obviamente bem difícil e muitas vezes mal compreendida.
Agradeço sua carta estimulante e envio
cordiais saudações, C. G. Jung.
(1)Após a leitura de Resposta a Jó, o
professor Schrenk escreveu a Jung (02 de fevereiro de 1952) e lhe enviou dois
sonhos dele mesmo e de um colega francês de 25 anos de idade, que também havia
lido o livro: os três sonhos seriam atribuídos a esta leitura. Nos dois
primeiros parágrafos de sua cara, Jung refere-se ao segundo sonho de Schrenk,
no qual ele encontra o seu muito estimado professor G. Este lhe diz: “Quero
mostrar-lhe hoje o banho de sol de minha filha”. O sonhador esperava ver o
corpo nu de uma mulher através de um biombo. Cf. também carta a Schrenk, de 18
de novembro de 1953.
(2)No mesmo sonho aparece que o sonhador
tenha de urinar, e a urina parece ser antiestética.
(3)O sonho do jovem colega de Schrenk,
ateu e adepto de Sartre, preso por longo tempo num campo de concentração, soava
assim: “Eu estava de novo num campo de concentração. Ao alto, bem por cima do
campo, voava em círculos uma água que “espreitava” o campo. Ele pertencia ao
partido oposto (...). Eu tinha a tarefa de (...) derrubá-lo”. Ao perguntar
sobre o significado da águia, o professor Schrenk havia levantado a possibilidade
ser ele a águia, pois já havia aparecido algumas vezes no sonho do amigo. Mas o
amigo respondeu espontaneamente: “Não, mas agora eu sei, é o professor Jung”.
Jung descreve este sonho, com minuciosa interpretação, em “A árvore filosófica”,
em OC. Vol. 13, § 466s.
(4)Jung se refere a ambos os sonhos: no
sonho de Schrenk trata-se do professor G (e não de Jung); no sonho do jovem
colega trata-se da águia (e não de Schrenk ou Jung).
(5) Zacarias 4.10: “...são os olhos de
Javé que percorrem toda a terra” – Cf. Resposta a Jó, OC, vol. 11, § 575.
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