To Upton Sinclair (1)
Corona (California), EUA, 03 de novembro
de 1952.
Dear Mr. Sinclair,
Li com profundo interesse o seu livro A
Personal Jesus. É obra de grande mérito que ajudará seus leitores a verem sob
nova luz uma figura religiosa. Fiquei curioso para saber como o senhor
abordaria a difícil tarefa de reconstruir a vida de Jesus. Como filho de pastor
e criado numa atmosfera intensamente teológica, ouvi falar de tentativas
semelhantes, levadas a cabo por Strauss (2), Renan (3), Moore (4), etc., e anos
depois li avidamente a obra de A. Schweitzer (5). Repetidas vezes, isto é, em
diferentes fases de minha vida, procruei fazer para mim, a partir dos escassos
testemunhos históricos do Novo Testamento, uma imagem da personalidade de
Jesus, pela qual se pudesse explicar também todo o efeito de sua existência. Minha
experiência psicológica deveria ter-me dado elementos suficientes para tal
tarefa, mas cheguei finalmente à conclusão de que, devido em parte à escassez
de dados históricos e em parte à abundância de misturas mitológicas, era
incapaz de reconstruir um caráter pessoal, isento de contradições bastante
fatais.
O senhor certamente teve êxito em
apresentar uma imagem aceitável de um certo Jesus. Ousaria mesmo dizer que é um
retrato semelhante desse caráter supostamente único. Pode até ser convincente a
um intelecto americano moderno, mas do ponto de vista de um cientista europeu,
o seu modus procedendi parece um pouco seletivo demais; isto é, o senhor exclui
muitas afirmações autênticas pelo simples fato de não servirem às suas
premissas como, por exemplo, predestinação e esoterismo, que não podem ser
excluídos por razões textuais. Não podem ser afastados como meras
interpolações. Também há evidência textual incontestável do fato de que Jesus
previu seu trágico fim. Além disso o senhor exclui praticamente toda a
impressionante quantidade de escatologia, cuja autenticidade é inegável, quer
ofenda a nossa racionalidade ou não.
Quando o senhor pinta um retrato, ainda
que da mais alta qualidade literária, ele está sujeito à mesma crítica que o
senhor faz ao evangelista João (p. 155s.): “Vamos aprender o que este
intelectual helenizado pensa de Jesus”. Nós aprendemos de seu livro o que um
escritor americano moderno “pensa de Jesus”. Isto não é menosprezo; apenas
mostra a minha perplexidade. Podemos certamente fazer uma imagem de Jesus que
não ofende nosso racionalismo, mas isto se faz às custas de nossa lealdade à
autoridade textual. Na verdade não podemos omitir nada do texto autêntico. Não
podemos criar uma imagem verdadeira da filosofia hermética do século IX se omitirmos
a metade dos libelli contidos no Corpus Hermeticum. O Novo Testamento, tal como
o temos hoje, é o Corpus Christianum que deve ser aceito em sua totalidade, ou
rejeitado de todo. Não podemos omitir nada que resiste a uma crítica filológica
razoável. Não podemos suprimir nenhuma contradição porque não possuímos nenhum
testemunho mais antigo, melhor ou mais confiável. Temos que assumir o todo e
fazer dele o melhor que pudermos.
O Corpus Christianum conta a história de
um Homem-Deus e as várias maneiras como foram entendidos sua vida e seus
ensinamentos. Se Jesus tivesse sido, como o senhor o retrata, um mestre
racionalmente compreensível de fina moral e um fervoroso crente num Deus-Pai
bondoso, por que os evangelhos está recheados de histórias miraculosas, e ele
mesmo cercado de afirmações esotéricas e escatológicas que o apresentam no
papel de um Deus-Filho e salvador cosmológico?
Se Jesus foi realmente apenas um grande
mestre, que se enganou redondamente em sua expectativa messiânica (6), jamais
poderíamos entender seu efeito histórico que aparece tão claramente no Novo
Testamento. Mas se não pudermos entender por meios racionais o que é um
Homem-Deus, também não entendemos o sentido do Novo Testamento. Mas seria
exatamente a nossa tarefa compreender o que eles entendiam por um “Homem-Deus”.
O senhor dá um excelente quadro de um
possível mestre religioso, mas nada dá a entender do que o Novo Testamento
tenta contar: a vida, o destino e o efeito de um Homem-Deus no qual somos
intimados a crer como uma revelação divina.
Eis a razão por que proporia tratar do
fenômeno primitivo chamado cristianismo de maneira algo diferente. Penso que
deveríamos admitir que não entendemos a charada do Novo Testamento. Com os
meios à nossa disposição, não podemos tirar dele uma história racional sem
interferir nos textos. Se corrermos este risco, podemos ler várias histórias a
partir dos textos e podemos dar-lhes um certo grau de probabilidade:
1.Jesus é um idealista, mestre religioso
de grande saber e com plena consciência de que seu ensinamento causará a
necessária impressão somente se ele estiver disposto a sacrificar sua vida por
ele. Assim ele força o desfecho, com pleno conhecimento antecipado dos fatos
que ele pretende que aconteçam.
2.Jesus é uma personalidade muito forte,
cheia de energia, sempre em oposição ao seu meio ambiente e com impressionante
força de vontade (7). Ainda que dotado de inteligência superior, percebeu que
não adiantava afirmar-se num plano terreno de sedição política, como vinham
fazendo muitos políticos fanáticos de seu tempo. Prefere o papel do antigo
profeta e reformador de seu povo, e institui um reino espiritual em vez de uma
revolva política sem êxito. Para isso não adota apenas as expectativas
messiânicas do Antigo Testamento, mas também a figura então popular de “Filho
do Homem”, do livro de Henoc. Mas sendo envolvido no turbilhão político de
Jerusalém, viu-se preso em suas intrigas e encontra um fim trágico com inteiro
reconhecimento de seu fracasso.
3.Jesus [e uma encarnação de Deus-Pai. Como
Homem-Deus percorre sua terra e reúne em torno de si os eklektoi
(8)
de seu Pai, anunciando a mensagem da salvação universal e sendo na maioria das
vezes incompreendido. Como coroação de sua curta carreira, ele consuma o
supremo sacrifício de oferecer-se como hóstia perfeita e assim redime a
humanidade da perdição eterna.
Em prol de cada uma das três variantes bem
distintas, é possível construir uma bela história a partir dos textos, mas com
a necessária omissão e violação da autoridade escriturística. A primeira e
segunda variantes são “racionais”, isto é, ela parecem estar dentro do campo de
nossa compreensão atual, ao passo que a terceira está definitivamente fora
dela; ainda que até 200 anos atrás ninguém pensasse assim.
Se evitarmos violações dos textos
autênticos, temos de considerar as três possibilidades, e talvez algumas mais,
e tentar encontrar a teoria que melhor sirva à imagem toda. Como os evangelhos
não dão, nem pretendem dar uma biografia do Senhor, a simples reconstrução de
uma vida de Jesus nunca explicaria a figura apresentada pelos textos. O pouco
que sabemos de sua biografia precisa ser complementado por um estudo muito
cuidadoso da atmosfera mental e espiritual típica do tempo e lugar dos
redatores dos evangelhos. As pessoas daquela época eram bastante helenizadas. O
próprio Jesus estava sob a influência da literatura escatológica, como o prova
o uioz anrwpou (cf. também a sinagoga de Dura Europos
(10), que lança nova luz sobre o sincretismo judaico).
O que chamamos “Jesus Cristo” é – temo eu
– muito menos um problema biográfico do que social, isto é, fenômeno coletivo,
criado pela coincidência de uma personalidade mal definida, ainda que
extraordinária, com um “espírito da época” (Zeitgeist) muito especial e que tem
sua psicologia própria, não menos extraordinária.
Prezado senhor, devo pedir desculpas pela
extensão de minha carta. Tendo eu mesmo dedicado muita reflexão ao problema de
Jesus e tendo realizado algum trabalho pioneiro neste campo, julguei importante
indicar-lhe como e onde eu tropecei ao tentar entender o desafio do enigma
cristão.
É certo que devemos acreditar na razão.
Mas ela não deve impedir-nos de reconhecer um mistério quando nos defrontamos
com ele. Parece-me que nenhuma biografia racional poderia explicar um dos
efeitos mais “irracionais” jamais observados na história humana. Acredito que
este problema só poderá ser abordado com a ajuda da história dos símbolos e da
psicologia comparada dos símbolos. Tentativas neste sentido já conseguiram
alguns resultados interessantes. (Infelizmente ainda não há publicações em
inglês que eu possa indicar).
Fico grato por sua gentil atenção.
Yours sincerely, C. G. Jung.
(1)Upton Sinclair, 1878-1968. Escritor
Americano. Esta carta foi publicada em The New Republic, Washington, 27 de abril
de 1953.
(2)David Friederich Strauss, Das Leben Jesus, kritisch bearbeited, 2
vols. 1835-36.
Strauss diz que os relatos dos evangelhos são formações inconscientes de mitos
das comunidades cristãs primitivas, mas sem negar a realidade histórica de
Jesus. O livro provocou celeuma, e ele perdeu sua cátedra num instituto de
Tübingen.
(3)Ernest Renan, La Vie de Jésus, 1863
(volume I de sua Histoire des Origines du Christianisme, 1863-81). Renan tentou
unir a ciência positivista e o cristianismo, e apresentou a vida e
personalidade de Jesus de maneira natural a partir de seu tempo e seu povo.
(4)Trata-se provavelmente do teólogo
americano George Foot Moore e de sua History of Religions, 2 vols. 1913-19.
(5)Albert Schweitzwe, Von Reinarus zu Wrede; eine Geshichte der
Leben-Jesu-Forschung, 1916. Ele defende um modo de ver escatológico da vida de
Jesus.
(6) Cf. Mt. 16.27. Jesus tinha dito a seus
discípulos que alguns deles haveriam de presenciar seu retorno para julgamento
do mundo e para a instituição definitiva do reino de Deus (parousia).
(7) C.f. Carta a Zarine, de 03 de maio de
1939, parágrado 4.
(8)Os eleitos.
(9)O filho do homem.
(10)Dura Europos, antiga cidade no
Eufrates. As escavações de 1928-37 trouxeram à luz uma sinagoga do século III
dC. O fato der estar ornada de afrescos com motivos do Antigo Testamento –
contrariando a proibição judaica de imagens – deve ser atribuído a influência
do meio ambiente.
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