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To Father Victor White

 

To Father Victor White,

Oxford, 24 de novembro de 1953.

 

Dear Victor,

Esqueça por um instante a dogmática e ouça o que a psicologia tem a dezer sobre o seu problema: Cristo como símbolo está longe de ser inválido (1), ainda que ele seja um lado do si-mesmo e o demônio seja o outro. Este par de opostos está contido no Criador como sua mão direita e esquerda, como diz Clemente Romano (2). Do ponto de vista psicológico, a experiência de Deus criador é a percepção de um impulso irresistível, provindo da esfera do inconsciente (3). Não sabemos se esta influência ou compulsão merece ser chamada de boa ou ruim, mesmo que não possamos deixar de saudá-la ou amaldiçoa-la, dando-lhe um nome bom ou mau, de acordo com a nossa disposição subjetiva. Javé possui os dois aspectos porque é essencialmente o criador (primus motor) e porque ainda é irrefletido em toda sua natureza.

Com a encarnação a figura muda completamente, pois significa que Deus se torna manifesto na forma de homem que é consciente e, por isso, está obrigado a julgar. Deve dizer que uma coisa é boa e a outra, ruim. É um fato histórico que o demônio real só veio à existência junto com Cristo (4). Ainda que fosse Deus, Cristo estava separado de Deus como homem; ele viu o demônio caindo fora do céu (5), separado de Deus, assim como ele (Cristo) estava separado de Deus enquanto ser humano. No mais completo desamparo na cruz, ele chegou a confessar que Deus o havia abandonado. O Deus Pater o abandonaria ao seu destino, pois ele sempre “castiga” (6) aqueles que ele havia antes enchido com esta abundância, quebrando sua promessa. É exatamente isto que S. João da Cruz descreve como “a noite escura da alma”. É o predomínio da escuridão, que também é Deus, mas uma provação para a pessoa humana. A divindade tem um duplo aspecto; e, segundo o Mestre Eckhart, Deus não é feliz em sua mera divindade, e este é o motivo de sua encarnação (7).

Mas ao encarnar-se Deus se torna ao mesmo tempo um ser determinado, que é isto e não aquilo. Por isso a primeira coisa que Cristo deve fazer é separar-se de sua sombra e chama-la de demônio (lamento, mas os gnósticos de Irineu (8) já sabiam disso).

Quando um paciente sai, hoje em dia, de seu estado de inconsciência, defronta-se imediatamente com sua sombra e deve decidir-se pelo bem, caso contrário estará perdido. Nolens volens ele “imita” Cristo e segue seu exemplo. O primeiro passo no caminho da individuação consiste em distinguir entre ele mesmo e a sombra.

Neste estágio, o bem é a meta da individuação e consequentemente Cristo representa o si-mesmo.

O passo seguinte é o problema da sombra: ao lidar com a escuridão, é preciso agarrar-se ao bem, caso contrário o demônio vai devorar a pessoa. Ao lidar com o mal, e sobretudo aqui, a pessoa precisa de todo pedacinho de sua bondade. O importante é conservar viva a luz na escuridão, e somente ali tem sentido sua vela.

O senhor poderia me dizer quantas pessoas conhece que poderiam afirmar com certa verossimilhança terem levado a cabo seu entendimento com o demônio e, por isso, poderem lançar fora o símbolo cristão?

Na verdade, nossa sociedade nem começou a defrontar-se com sua sombra e nem a desenvolver aquelas virtudes cristãs tão urgentemente necessárias para lidar com as forças da escuridão. Nossa sociedade não pode dar-se o luxo de separar-se da imitatio Christi, mesmo que soubesse que o conflito com a sombra, isto é, Cristo contra Satanás, é apenas o primeiro passo no caminho para o objetivo mais distante da unidade do si-mesmo em Deus.

Contudo, é verdade que a imitatio Christi leva a pessoa para o conflito próprio, muito real e semelhante a Cristo com a escuridão. E quanto mais estiver envolvida nesta guerra e nestas tentativas de paz, ajudada pela anima, tanto mais começará a olhar para frente, para além do éon cristão, para a unidade do Espírito Santo. Ele é o estado pneumático que o criador alcança através da fase da encarnação. Ele é a experiência de todo indivíduo que sofreu a completa abolição de seu ego através da oposição absoluta, expressa no símbolo Cristo contra Satanás.

O estado do Espírito Santo significa uma restituição da unidade original do inconsciente no nível da consciência. A isto alude, a meu ver, o logion de Cristo: “Vós sois deuses” (9). Este estado não pode ser entendido totalmente. Trata-se de uma mera antecipação.

Por um lado, o desenvolvimento último do éon cristão para aquele do Espírito Santo foi chamado de evangelium aeternum por Gioacchino da Fiori, num tempo em que a grande divisão havia apenas começado (10). Esta visão parece concedida por graça divina como uma espécie de consolamentum (11), de modo que a pessoa não é abandonada a um estado de completa desesperança durante o tempo da escuridão. Nós estamos realmente no estado da escuridão do ponto de vista da história. Nós estamos ainda dentro do éon cristão e começamos a perceber a era da escuridão, na qual precisamos em grau máximo das virtudes cristãs.

Num estado desses não podemos descartas Cristo como um símbolo válido, ainda que vejamos claramente a aproximação de seu oposto. Mas não vemos nem sentimos esta aproximação como passo preliminar para a união futura dos opostos divinos, mas antes como ameaça contra tudo que é bom, belo e santo para nós. O adventus diaboli não invalida o símbolo cristão do si-mesmo; ao contrário, ele o complementa. É uma transmutação misteriosa de ambos.

Vivemos numa sociedade que está inconsciente desse desenvolvimento e longe de compreender a importância do símbolo cristão; por isso somos chamados a trabalhar contra a invalidação do símbolo, mesmo que a alguns de nós seja concedida a visão de um desenvolvimento futuro. Mas ninguém de nós poderia dizer com segurança que realizou a assimilação e integração da sombra.

Uma vez que a Igreja cristã é a comunidade de todos aqueles que se submeteram ao princípio da imitatio Christi, esta instituição (isto é, esta atitude mental) deve ser mantida até que seja claramente entendido o que significa a assimilação da sombra. Aqueles que preveem devem ficar, por assim dizer, atrás de visão, para ajudar e ensinar, principalmente se pertencem à Igreja como seus servidores.

O senhor não deve preocupar-se se algum de seus analisandos abandonou a Igreja. Isto é o destino e a aventura deles. Outros permanecerão. Também não importa se as instâncias eclesiais aprovem sua visão ou não. Quando o tempo se completar, uma nova orientação vai impor-se de modo irrestivel, como vimos no caso da Imaculada Conceição (12) e da Assunção; ambos os casos desviam-se dos princípios secularmente consagrados da autoridade apostólica (13), fato antes inconcebível. Seria atitude irresponsável e autoerótica privar os nossos contemporâneos de um símbolo de importância vital antes de terem uma ocasião razoável de entendê-lo completamente; e tudo isto porque não está completo, se considerado a partir de um estágio antecipado que nós mesmos ainda não tornamos real em nossa vida individual.

Qualquer pessoa que vai em frente está sozinha ou pensa às vezes que está só, não importando que esteja na Igreja ou no mundo. Seu trabalho prático como directur de conscience lhe traz pessoas que têm algo em seu caráter que corresponde a certos aspectos de sua personalidade (à semelhança das muitas pessoas que se enquadravam como pedras na construção da torre do Pastor de Hermas) (14).

Qualquer que seja sua decisão definitiva, o senhor deveria reconhecer de antemão que faz sentido permanecer na Igreja. É importante levar as pessoas a compreender o que significa o símbolo de Cristo, pois tal compreensão é indispensável para qualquer desenvolvimento ulterior. Não há como contornar isso, assim como não há para eliminar de nossa vida a idade, a doença, a morte ou a cadeia nidana de males de Buda (15). A grande maioria das pessoas está ainda em tal estado inconsciente que deveríamos quase protegê-las contra o choque pleno da real imitatio Christi (16). Além do mais, estamos ainda no éon cristão, ameaçados por completa aniquilação de nosso mundo.

Como não existe apenas a maioria, mas também os poucos, alguém recebeu a tarefa de olhar para diante e falar das coisas por vir. Isto é parcialmente minha tarefa, mas devo ser muito cuidadoso para não destruir as coisas que existem. Ninguém será tão tolo a ponto de destruir os fundamentos quando levanta mais um andar em sua casa; e como poderia levantá-lo se os fundamentos não estão bem colocados? Se afirmo que Cristo não é um símbolo completo do si-mesmo, não posso torná-lo completo, abolindo-o. devo conservá-lo em ordem para construir o símbolo da perfeita contradição em Deus, acrescentando esta escuridão ao lumen de lumine (17). Aproximo-me assim do fim do éon cristão e devo assumir a antecipação de Gioacchino e a predição de Cristo sobre a vinda do Paráclito. Este drama arquetípico é ao mesmo tempo esquisitamente psicológico e histórico. Vivemos numa época de divisão do mundo e de desvalorização de Cristo.

Mas a antecipação de um futuro distante não é uma saída para a situação atual. É apenas um “consolamentum” para aqueles que se desesperam diante das possibilidades terríveis de nosso tempo. Cristo é ainda o símbolo válido. Somente o próprio Deus pode “invalidá-lo” através do Paráclito.

Era o que eu tinha a dizer. É uma carta longa e eu estou cansado. Se não lhe servir para nada, ao menos mostra o que eu penso.

Vi X. Ela está tão bem quanto pode estar e quanto normalmente está, e tão mal quanto sua natureza permite e também tão esperançosa quanto um temperamento histérico pode estar.

O senhor certamente ouviu falar de nossa pequena festa por causa do Códice gnóstico Nag-Hamâdi (18), doado ao Instituto por um generoso benfeitor. Até no Times saiu uma notícia (19). Foi uma celebração desproporcional, não sendo de minha iniciativa nem de meu agrado. Mas, ao final, fui forçado a dizer algumas palavras sobre a relação entre a gnose e a psicologia (20).

Meus melhores votos!

Yours cordially,

C. G.

 

(1)Numa carta (08.11.1953), o padre White havia escrito sobre a suposta afirmação de Jung de que Cristo não seria mais um símbolo válido ou adequado do si-mesmo. Na presente carta, Jung esclarece o mal-entendido.

(2)A afirmação não é de Clemente Romano. Ela é atribuída à ideia judeu-cristã de que Deus teria um filho mais velho, Satanás, e um mais novo, Cristo. Encontra-se isto nas chamadas Homilias de Clemente, uma coletânea de escritos gnóstico-cristãos, redigidos provavelmente por um desconhecido por volta do ano 150 dC. Sobre um dito semelhante de Clemente Romano, cf. carta a Dr. H, de 17.03.1951, nota 9.

(3)Cf. “Psicologia e religião” – Vol. 11, § 137: “... porque é sempre ao valor psíquico avassalador que se dá o nome de Deus. Logo que um deus deixa de ser um fator avassalador, converte-se num simples nome”.

(4)Jung considera o demônio do Novo Testamento, em oposição ao Satanás do Antigo Testamento, como adversário escuro do Cristo reluzente. Cf. Aion, Vol. 9/2, §113.

(5)Lucas 10.28.

(6)Apocalipse 3.19: “Eu repreendo e corrijo os que eu amo”.

(7)Cf. o capítulo “A relatividade do conceito de Deus em Metre Eckhart”, em Tipos Psicológicos – Vol. 6.

(8)Irineu menciona em seu Adversus Haereses libri quinque o conceito de uma “umbra Christi”, empregado pelos gnósticos. Cf. Aion, §75, nota 23.

(9)João 10.34: “Jesus respondeu: Não está escrito em vossa Lei: Eu disse: vós sois deuses?” (Jesus refere-se ao Salmo 82.6).

(10)Giocchino da Fiori, por volta de 1130-1202, teólogo místico. Ele ensinou que havia três períodos na história: o período do Pai ou da lei, o período do Filho ou do evangelho e o período do Espírito Santo ou da contemplação. Este ensinamento foi considerado pelos radicais franciscanos como “evangelium aeternum”. Ele esperava o fim do período do Espírito Santo no mais tardar para a segunda metade do século XIII. Suas doutrinas foram condenadas pelo quarto Concílio do Latrão (1215). Cf. Aion, §137s.

(11)Consolamentum, “rito de consolação”, foi realizado pelas seitas heréticas dos cátaros e albigenses. Trata-se de um batismo com o Espírito Santo, que fora prometido por Cristo aos homens como “consolador” (João 14.26). O “consolamentum” deveria libertar os homens do pecado original.

(12)O dogma da Imaculada Conceição foi proclamado por Pio IX, em 1854, pela bula “Inefabilis Deus”. Ele diz que Maria havia sido preservada do pecado original.

(13)A “autoridade apostólica” designa o princípio segundo o qual tudo o que os apóstolos ensinaram é infalível, e nada é cristão se não provier desta fonte.

(14)O Pastor de Hermas, um escrito confessional dos primórdios do cristianismo, provavelmente de meados do século II, redigido em grego, foi atribuído a Hermas, irmão do Papa Pio I. Consiste de uma série de visões e revelações que apresentam a consolidação da nova crença. Sobre o escrito de Hermas e sobretudo sua visão da construção de uma torre, cf. Tipos Psicológicos – vol. 6, §430s.

(15)De acordo com a concepção budista, a cadeia nidana consiste de doze aspirações e condições, começando pela “ignorância” e terminando com o “desespero”, que mantém presas as pessoas na cadeia dos renascidos.

(16)Sobre a imatatio Christi, cf. Psicologia e alquimia, Vol. 12, §7s.

(17)Como lumen de lumine (luz da luz) foi Cristo, a “verdadeira luz” (João 1.9), designado pelo Concílio de Niceia (325).

(18)Trata-se de um manuscrito gnóstico de papiro, em língua copta, datado do século II dC, encontrado na aldeia Nag-Hamâdi no Alto Egito e adquirido pelo Instituto C. G. Jung com o auxílio de um generoso benfeitor. O manuscrito, que recebeu o nome de Codex Jung, contém vários escritos: o “Evangelium veritatis”, atribuído a Valentino; “De Resurrectione (Epistulae ad Rheginum)”; “Epístula Jacobi Apocrypha”; “Tractatus Tripartitus” (1ª. Parte: De Supernis, 2ª. Parte: De Creatione Hominis, 3ª. Parte: De Generibus Tribus). Os editores foram R. Kasser, M. Malinine, H.-Ch. Puech, G. Quispel, W. Till e J. Zahndee. Ao texto original copta, além da tradução inglesa, francesa e alemã, foram acrescentados comentários.

(19)”New Light on a Coptic Codex”, The Times, 16.11.1953.

(20)O discurso de Jung na entrega do Codex, 15.11.1953, está no Vol. 18.

 

O padre White responde a esta carta de Jung com um breve mas cordial agradecimento (29.11.1953) e acrescentou o seguinte: “... the points that ‘ring the bell’ most immediately are those about the ‘autoerotic atitude’ and about ‘an antecipation of a faraway future is no way out’...”

Tradução livre: “... os pontos que ‘tocam a campainha’ mais imediatamente são aqueles sobre a ‘atitude auto-erótica’ e sobre ‘uma antecipação de um futuro distante não tem saída’...”

Excertos desta carta de Jung foram publicados no Vol. 11, §637.

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