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AO Pastor Dr. Willi Bremi

 

Ao Pastor Dr. Willi Bremi

Basileia, 11 de dezembro de 1953.

 

Prezado Pastor,

Receba meu sincero agradecimento pela agradável surpresa que me proporcionou com o envio de seu esplêndido livro (1). Já comecei a lê-lo com avidez e aprendi muita coisa que eu não conhecia bem ou simplesmente não conhecida. O senhor sabe dar um conspecto geral sem omitir o essencial. Até agora li quase uma terça parte. Ele é interessante e para mim especialmente cativante, como tudo que trata de nossa problemática atual. Até agora pude acompanhá-lo e aprová-lo em tudo, só com relação a Albert Schweitzer há algumas questões. Considero muito este homem e seu trabalho científico e admiro sua aptidão e versatilidade. Mas não consigo ver grande mérito em seu reconhecimento de que Cristo e os apóstolos se enganaram em sua expectativa da parusia (2) e que esta desilusão teve suas consequências no desenvolvimento do dogma eclesiástico. Isto já era sabido há muito tempo. O fato de havê-lo dito em alto e bom som nada mais é do que honestidade científica. Este fato brilha com tal intensidade porque contrasta com o lado escuro da pusilanimidade e desonestidade de outros que já sabiam disso há mais tempo mas não queriam admiti-lo. Mas, ao que eu saiba, Schweitzer não deu nenhuma resposta sobre a conclusão de que com isso Cristo fica irremediavelmente relativizado. Qual é a posição dele diante disso?

O que faz ele com este estarrecedor conhecimento de que Cristo se enganou e que talvez não tenha visto claramente também em outros assuntos? Cristo é para ele a “autoridade máxima”, portanto primus inter pares, e um dos melhores fundadores de religião, ao lado de Pitágoras, Zaratustra, Buda, Confúcio, etc. mas não foi isto que se pretendeu originalmente; em todo caso, nenhuma crença cristã e muito menos Karl Barth subscreveriam este julgamento. Todo racionalista de boa vontade e também a pieguice mental dos maçons e dos antropósofos poderiam endossar sem hesitação a fórmula “autoridade máxima”.

Diante da afflicto animae (3) verdadeiramente terrível dos europeus, Schweitzer renunciou à tarefa imposta ao teólogo, isto é a cura animarum, e estudou medicina para tratar do corpo enfermo dos negros. Para os negros isto foi muito gratificante; e eu sou o primeiro a louvar aqueles médicos dos trópicos que, em postos isolados e sob condições perigosas, arriscam sua vida e muitas vezes a perdem. Nenhum desses mortos que repousam na terra africana está cercado da auréola de um santo protestante. Ninguém fala deles, Schweitzer não faz mais do que sua obrigação profissional, assim como qualquer missionário médico. Todo médico dos trópicos em postos isolados gostaria muito de construir seu próprio hospital, mas infelizmente não tem o talento de Schweitzer de dar conferências remuneradas e recitais comoventes de órgão para esta finalidade.

Visto o caso pelo ângulo contrário: O que dizer de um cirurgião competentíssimo, especialista quase insubstituível que, confrontado com um enigma médico, se fizesse padre franciscano para rezar missa e ouvir as confissões de camponeses nos rincões mais afastados de Lötschental? Talvez a Igreja católica o beatificasse e, após alguns séculos, também o canonizasse ad maiorem ecclesiae gloriam. Mas o que diria a razão protestante ou mesmo a associação médica sobre isso?

Infelizmente sinto muito que Schweitzer tenha encontrado a resposta à conclusão catastrófica de sua Geschichte der Leen-Jesu-Forschung nisso: renunciar à cura animarum na Europa e tornar-se um salvador branco entre os negros. Surge aqui uma analogia fatal com Nietzsche: “Deus está morto”, e apareceu o super-homem, segundo a regra de que as pessoas que rejeitam os deuses se tornam deuses elas mesmas (um grande exemplo: a Rússia). Um Cristo relativizado não é mais o mesmo Cristo da anunciação. Quem o relativiza incorre no perigo de se tornar ele mesmo o salvador. E onde é isto possível da melhor maneira? Bem, na África. Conheço a África e sei como lá o médico branco é idolatrado, de modo comovente e sedutor.

Schweitzer deixou aos cristãos europeus a tarefa de descobrir o que fazer com um Cristo relativizado.

Permita-me ainda algumas palavras sobre o ideal da caritas christiana. Ela é um dom ou um carisma, como a . Há pessoas que por natureza creem e confiam. Para elas a fé e o amor são expressões naturais da vida, beneficiando também seus co-irmãos. Para os outros, menos dotados ou sem nenhum dom, são ideais quase inatingíveis, portanto um esforço convulsivo que também é sentido pelos co-irmãos. Também aqui se levanta a questão sempre ignorada: Quem acredita e quem ama? Em outras palavras, sob certas circunstâncias tudo depende de quem pratica certa ação ou de qual é a constituição do sujeito de uma função; pois “os meios corretos na mão do homem errado” produzem desgraça, como diz muito bem a sabedoria chinesa. Como realizar a necessária metanoia (4), quando um Cristo relativizado nos diz tanto ou tão pouco quanto um Lao-tse ou um Maomé? Será que a relação religiosa não é realmente outra coisa senão a submissão a uma autoridade reconhecida como falível? Segundo o lema de Schweitzer, deveríamos todos ir para a África e curar as doenças dos negros, quando entre nós a doença da psique brada aos céus?

Quando o senhor escreve “de Lutero a Schweitzer”, surge a questão: O senhor coloca em comparação Lutero e Schweitzer no mesmo plano? Em caso afirmativo, continua a pergunta: Qual foi a inovação ou liderança que ele trouxe ao mundo? Ele é um cientista e pesquisador eminente, um organista brilhante e um benfeitor médico dos negros em Lambarene. Ele anunciou com toda clareza o fato já conhecido de que Cristo se havia enganado sobre a parusia e, assim, apresentou ao mundo um Cristo relativizado e localmente condicionado. Este mérito poderíamos conceder ao Prof. Volz, que fez uma exposição impressionante sobre a demonia de Javé (5). Este Javé é também o Deus do Novo Testamento?

Parece-me que o destino ulterior do protestantismo depende em grande parte da resposta dessas duas perguntas.

Sob o aspecto da caridade, a ação filantrópica de Schweitzer mal se compara com a atividade do Pastor von Bodelschwingh (6), do General Booth (7) e de muitos outros sancti minores do protestantismo.

Parece-me também que o fundamento metafísico da fé e da exigência ética não seja algo indiferente. O que se ouve comumente: “Tu deves querer ter fé e amar” está em oposição direta ao caráter carismático desses dons. O médico pode eventualmente dizer a um doente desmoralizado: “O senhor pode também querer restabelecer-se”, sem com isso admitir seriamente que a doença ficará curada e que seu conhecimento e sua aptidão sejam supérfluos. O sermão é de todo insuficiente como cura animarum, pois a doença é um assunto do indivíduo e não será curada num salão de conferências. O médico deve levar em consideração as disposições do indivíduo, mesmo quando trata apenas do corpo. Mas a cura animarum é um assunto individual em grau ainda muito maior e que não pode ser resolvido a partir do púlpito. Parece-me, pois, da máxima urgência responder às questões acima, pois o interessado em religião perceberá com o tempo que o conceito protestante de Deus não está claro e que o salvador é uma autoridade duvidosa. Como pode alguém orar a deuses relativizados, se não é mais um indivíduo pré-cristão?

Peço-lhe, senhor Pastor, que não leve a mal minhas perguntas de leigo. Não me interessa criticar a pessoa de A. Schweitzer. Não o conheço pessoalmente. Mas interesso-me pela problemática religiosa, pois isto me atinge não só pessoalmente mas também a minha atividade profissional. O livro que lhe envio em retribuição ao seu (8) pode esclarecer-lhe os pontos de contato entre a psicologia e as questões teológicas.

Como paralela à sua mandala, anexo o recorte da revista da BBC (9).

Com elevada consideração e renovado agradecimento,

C. G. Jung.

 

P. S. Talvez o senhor me permita chamar sua atenção para a p. 525. Lá o senhor faz o mito derivar de considerações racionais. Este ponto de vista está superado. Todas as ascensões e descensões mitológicas derivam de fenômenos psíquicos primitivos, isto é, dos estados de transe dos feiticeiros, conforme podemos ver no xamanismo espalhado no mundo inteiro. Ao transe está ligado normalmente o relato da subida ao céu ou descida ao inferno. Quase sempre faz parte disso o rito mágico da subida em árvores (árvore do mundo, montanha do mundo, eixo do mundo), da chegada à morada celeste (aldeia, cidade) e à esposa celeste (nuptiae coelestes, hierosgamos), ou da descida ao mundo inferior, ao mundo dos mortos, para junto da “mãe dos animais” no fundo do mar. Isto são fenômenos psíquicos genuínos que ainda hoje podemos observar em formas modificadas. Na tradição cristã o senhor encontra o mesmo mitologema em Santo Agostinho (Serm. Suppositus 120,8): “Procedit Christus quase sponsus de thalamo suo, praesagio nuptiarum exiit ad campum saeculi; ... pervenit usque ad cucirs toum et ibi firmavit ascendendo coniugium; ubi cum sentiret anhelantem in suspiriis creaturam commercio pietatis se pro coniuge dedit ad poenam... et copulavit sibi perpetuo iure matronam” (10). A arbor crucis (11) é entendida aqui como “cama nupcial” (torus). A coletânea mais recente e talvez a mais completa da fenomenologia xamanista está em M. Eliade, Le Chamanisme, 1951. Trata-se de um arquétipo de experiência psíquica que pode surgir espontaneamente em qualquer parte. O arquétipo pertence à estrutura básica da psique e nada tem a ver com fenômenos astronômicos ou meteorológicos.

 

(1)W. Bremi, Der Weg des protestantischen Menschen, von Luther bis Albert Schweitzer, Zurique, 1953.

(2)Confira a carta a Sinclair, de 03 de novembro de 1952, nota 7.

(3)Sofrimento da alma.

(4)Conversão.

(5)Confira P. Volz, Das Dämonische in Jahwe, Tubinga, 1924.

(6)Friederich von Boldelschwingh, 1831-1910, clérigo evangélico, fundador de numerosas instituições beneficentes que serviram de apoio à missão interna alemã.

(7)William Booth, 1829-1912, pregador metodista inglês, fundador e “general” do Exército da Salvação.

(8)Jung enviou ao Pastor Bremi seu livro Aion.

(9)O recorte era a publicação na revista The Listener, 23.04.1935, de uma conferência de Zwi Werblowsky na BBC (terceiro programa). Confira a carta a Werblowsky, de 21.05.1953, nota 1. Werblowsky citou o sonho de uma mandala cujo centro estava vazio.

(10) “Cristo caminha em frente como o esposo ao deixar seu aposento; com o presságio das núpcias sai para o campo do mundo;... chega ao leito nupcial da cruz e, subindo para lá, estabeleceu a união conjugal... e ao sentir os penosos suspiros da criatura entregou-se ao castigo em lugar da esposa... e uniu a si sua mulher por um direito eterno” (Santo Agostinho, Sermo Suppositus, 120, 8. Confira Símbolos da transformação, Vol. 5, § 411; Mysterium Coniunctionis I, Vol. 14/1, § 25).

(11) Árvore da cruz. Sobre a cruz de Cristo como árvore, confira “A árvore filosófica”, em Vol. 13, § 446 e Símbolos da transformação, Vol. 5, § 411.

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