To Rev. Erastus Evans,
c/o The Guild of Pastoral Psychology
Londres, 17 de fevereiro de 1954.
Dear Mr. Evans,
Permita que lhe expresse meu sincero
agradecimento por sua recensão (1) verdadeiramente objetiva de minha
desajeitada tentativa de perturbar a odiosa sonolência dos guardiães. É assim
que vejo esta meu maldito e pequeno livro. Habent
sua fata libelli! (Os livros têm os seus!) Por mim não teria escrito sobre
esta assunto. Eu me mantive afastado dele cuidadosamente. Publiquei
anteriormente o volume Aion em
linguagem cortês e tão humana quanto possível. Mas aparentemente isto não
bastou, porque fiquei doente e, quando estava com febre, esta coisa me atacou e
me obrigou a escrever, apesar da febre, da minha idade e de meu coração que não
está muito bom. Posso assegurar-lhe que sou um covarde moral enquanto possível.
Como pequeno e bom burguês estou ainda sob o choque de todas as minhas
indiscrições e mantenho-me prostrado e escondido o mais que posso, jurando a
mim mesmo que não haverá outras, porque desejo paz, vizinhança amigável, boa
consciência e o sono dos justos. Por que seria eu o louco indizível que salta
para dentro do caldeirão?
Bem! Não quero ser melodramático. Isto é
para sua informação pessoal. Não tenho mérito nem propriamente culpa nele
livro, pois cheguei a ele “como o cachorro ao pontapé”, como nós costumamos
dizer. E o pequeno covarde moral, que sou eu, continua a lamentação: por que
sou sempre eu que coleciono todos os safanões?
Digo-lhe estas coisas porque o senhor foi
gentil, justo e complacente comigo. O atributo “rude” é pouco em comparação com
o que se sente quando Deus desloca os costados de alguém ou quando mata os
primogênitos. Garanto que os socos que Jacó deu no anjo não foram carícias ou
gestos corteses (2). Foram da mais crua dureza e, como o senhor diz muito bem,
“sem luvas”.
Isto é um lado de minhas experiências com
o que se chama “Deus”. “Rude” é uma palavra fraca demais para isso. “Bruto”,
“violento”, “cruel”, “sanguinário”, “infernal”, “demoníaco” seria melhor. O
fato de eu não ter sido diretamente blasfemo deve-se à minha educação e
covardia cortês. E a cada passo eu me senti impedido por uma visão beatífica,
sobre a qual preferi não dizer nada.
O senhor interpretou meus pensamentos de
modo admirável. Em apenas um ponto parece-me que o senhor escorregou, isto é,
ao atribuir a mim a imagem tradicional, dogmática e “familiar” de Cristo. Isto
não é de forma alguma minha ideia pessoal de Cristo, pois simpatizo com uma
imagem mais sombria e mais severa do homem Jesus. Mas a concepção dogmática e
tradicional de Cristo é tão brilhante quanto possível, e deve sê-la – lumen de lumine (3) -, de toda
substância negra está no outro canto.
O senhor provavelmente ficou chocado com a
ideia dos “irmãos hostis” (4) e da encarnação incompleta (5). Se tivesse sido
completa, a consequência lógica, a parusia, teria acontecido. Mas Cristo estava
enganado a este respeito.
Praticamente não faz diferença se o Cristo
dos evangelhos se transforma por uma enantiodromia (6) no juiz implacável do
apocalipse, ou se o Deus de amor se torna um destruidor.
Cristo em um oposto – o Anticristo e/ou o
demônio. Se vemos um pouco de escuridão demais em sua figura, nós o tornamos
semelhante demais a seu pai, e então fica difícil entender por que ele pregou
um Deus tão diferente daquele do Antigo Testamento. Ou renegamos toda a cristã
de grande parte dos 1.900 anos.
Decididamente, Cristo não é toda a
divindade, pois é en to pan (7). Cristo é o anthropos que aparece ser uma
prefiguração daquilo que o Espírito Santo criará mais tarde no ser humano.
(Gostaria que lesse o meu livro Aion;
lá encontrará a maioria do material em que se baseia Resposta a Jó). Numa parte da Kabbala, de Lurja, desenvolve-se a
ideia fantástica de que o homem está destinado a tornar-se o ajudante de Deus
na tentativa de restaurar os vasos, que se quebraram, quando Deus pensou em
criar o mundo (8). Faz poucas semanas que encontrei esta doutrina
impressionante: ela dá sentido ao estado do homem, exaltado pela encarnação.
Estou feliz por poder citar ao menos uma voz em favor de meu manifesto
involuntário. Ou não acha o senhor que a humanidade deveria produzir algumas
reflexões pertinentes, antes que ela exploda na eternidade? Eu percebi algo
quando o fogo estava chovendo sobre as cidades alemães e quando Hiroshima
desapareceu num relâmpago. Achei que o mundo em que vivíamos era muito
drástico. Há um provérbio que diz: um tronco grosso pede uma cunha grossa. Não
é tempo para sutilizas! Este é um problemas de nosso cristianismo.
I remain, dear Mr. Evans,
Yours gratefully, C. G. Jung
(1)E. Evans, Na Assessment of Jung’s
“Answer of Job”, Guild Lectures, n. 178, Londres 1954.
(2)Cf. Gênesis 32.24. Cf. também Memórias,
p. 297.
(3)Luz da luz, cf. João 1.9.
(4)Como o demônio (Satanás) também é filho
de Deus, Jung considerava as figuras mutuamente opostas de Cristo-demônio como
manifestações do “par de irmãos hostis” arquetípico. Via prefigurações nos
pares de irmãos Caim e Abel, Jacó e Esaú. Cf. Vol 11, § 254, nota 21. Sobre o
fenômeno desse padrão intemporal e arquetípico como sequência aperiódica, ou
seja, numa repetição muitas vezes irregular no tempo, Resposta a Jó, §629.
(5)Jung fala no mesmo contexto também na
encarnação contínua. Entende por isso uma morada do Espírito Santo no homem
mortal. “A encarnação de Deus em Cristo precisava ser continuada e
complementada, pelo fato de Cristo não ser um homem empírico devido à sua partenogênese
e impecabilidade. (...) A ação contínua e direta do Espírito Santo sobre os
homens convocados à condição de filhos de Deus é, de fato, uma encarnação que
se realiza permanentemente. Enquanto filho gerado por Deus, Cristo é o
primogênito ao qual se seguirá um grande número de irmãos” (Resposta a Jó, §
657).
(6)Cf. carta a Sinclair, de 02 de novembro
de 1952, nota 6.
(7)O um, o todo.
(8)Cf. carta a Kirsch, de 18 de novembro
de 1952, nota 7.
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