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Monsieur André Barbault

Paris, 26 de maio de 1954.

 

Monsieur,

Antes de mais nada gostaria de pedir desculpas pela demora em responder à sua carta de 19 de março. Isto se deve às minhas férias ou doença. Além disso, minha idade já não me permite cumprir todas as minhas obrigações como eu gostaria.

Eis as respostas às suas perguntas:

1.Relação entre astrologia e psicologia:

Há muitos exemplos de analogias surpreendentes entre constelações astrológicas e fatos psicológicos, ou entre o horóscopo e a disposição do caráter. Até certo ponto é possível predizer inclusive o efeito psíquico de uma passagem, por exemplo (2).

Pode-se esperar com um grau de possibilidade bastante elevado que uma situação psíquica determinada venha acompanhada de uma configuração astrológica análoga. A astrologia, assim como o inconsciente coletivo, com o qual se ocupa a psicologia, consiste de configurações simbólicas: os planetas são os “deuses”, símbolos das forças do inconsciente (em primeiro lugar, ao lado de outro).

2.O modus operandi de constelações astrológicas:

Parece-me que se trata principalmente daquele paralelismo ou daquela “simpatia” que eu chamo sincronicidade, isto é, a conexão acausal que expressa relações não explicáveis por uma causa como, por exemplo, a precognição, premonição, psicocinese (PK) e também o que chamamos de telepatia. A causalidade é verdade estatística, mas existem exceções de natureza acausal que integram a categoria dos fatos sincronísticos (não sincrônicos”). Eles se referem ao “tempo qualitativo”.

3.Minha posição quanto à suposição astrológica de existir um quadro psíquico desde o nascimento e quanto à explicação psicanalítica da etiologia das neuroses por meio de experiências da primeira infância:

O efeito específico (patogênico) das primeiras experiências baseia-se, por um lado, nas influências do meio ambiente e, por outro, na predisposição psíquica, isto é, na hereditariedade, o que parece ficar demonstrado no horóscopo. Parece que o horóscopo corresponde a um momento determinado na conversa dos deuses, ou seja, dos arquétipos psíquicos.

4.O tempo qualitativo:

Empreguei este conceito em tempos passados, mas eu o substituí pela ideia da sincronicidade, uma analogia à simpatia ou correspondentia (sumpaqeia dos antigos), ou à harmonia preestabelecida de Leibniz. O tempo em si consiste de nada. Ele é apenas um modus cogitandi que utilizamos para exprimir e formular o fluxo das coisas e acontecimentos, assim como o espaço nada mais é do que um modo de circunscrever a existência de um corpo. Se nada acontecer no tempo e não houver corpo no espaço, então não haverá tempo nem espaço. O tempo é “qualificado” sempre e exclusivamente por acontecimentos, e o espaço pela extensão dos corpos. “Tempo qualitativo” é uma tautologia e não diz nada, ao passo que sincronicidade (não “sincronismo”) expressa o paralelismo e a analogia dos acontecimentos, enquanto forem não causais. O “tempo qualitativo” é uma hipótese que pretende explicar o paralelismo e a analogia dos acontecimentos em termos de causa e efeito. Mas enquanto o tempo qualitativo é apenas um fluxo de coisas e igualmente “nada” como o espaço, esta hipótese só confirma a tautologia: o fluxo das coisas e dos acontecimentos é a causa do fluxo da coisa, etc.

A sincronicidade não admite a causalidade para explicar a analogia entre acontecimentos terrenos e constelações astrais (excetuando-se a deflexão dos prótons solares e sua possível influência sobre acontecimentos terrenos). E não a admite de modo algum nos casos de percepções extrassensoriais (PES), sobretudo no caso da precognição; pois é inconcebível que se possa perceber o efeito de uma causa não existente, ou ainda não existente.

O que se pode afirmar com a ajuda da astrologia é a analogia dos acontecimentos [terrenos e das constelações astrais](4), mas não a causa ou efeito de uma série de acontecimentos em relação à outra (a mesma constelação significa, por exemplo, na mesma pessoa, uma vez que uma catástrofe e outra vez um resfriado...).

Apesar disso, o problema da astrologia não é tão simples. Essas deflexões dos prótons solares existem nas conjunções, oposições e quadrantes, por um lado, e nos trígonos e sextis, por outro, e exercem influência sobre o rádio e outras coisas mais (5). Não tenho competência para julgar da importância que deve merecer esta possibilidade.

De qualquer forma, a posição da astrologia é especial entre os métodos intuitivos; existem razões para duvidar da teoria da causalidade e também da validade exclusiva da hipótese da sincronicidade (6).

5.Observei várias vezes que uma fase psíquica bem definida ou um acontecimento correspondente eram acompanhados de uma passagem astral (Sobretudo quando Saturno e Urano eram atingidos).

6.Minha principal crítica aos astrólogos:

Se eu pudesse manifestar-me sobre um campo que conheço apenas superficialmente, diria que o astrólogo nem sempre toma as indicações como simples possibilidade. A interpretação é às vezes literal demais e simbólica de menos, e é também pessoal demais. O zodíaco e os planetas não fornecem dados pessoais, mas dados impessoais e objetivos. Também devem ser consideradas diversas “camadas de interpretação” na interpretação das casas.

7.É evidente que a astrologia tem muito a oferece à psicologia, mas é menos evidente o que esta última pode oferecer à sua irmã mais velha. Eu diria que seria proveitoso para a astrologia se ela tomasse em consideração a existência da psicologia, sobretudo a psicologia da pessoa e do inconsciente. Estou quase certo de que alguma coisa pode ser aprendida de seu método da interpretação dos símbolos. Trata-se da interpretação dos arquétipos (dos deuses) e de suas relações mútuas, interesse comum das duas artes. Sobretudo a psicologia do inconsciente trata da simbologia arquetípica.

Espero ter respondido às suas perguntas.

Je vous presente, Monsieur, l’expression de mes sentiments distingués.

C. G. Jung.

 

(1)André Barbault era vice-presidente do “Centre International d’Astrologie”, Paris. Enviou a Jung as seguintes perguntas:

a.Qual a relação que o senhor vê entre astrologia e psicologia?

b.Como pode ser descrita esta relação: física, causal ou sincrônica?

c.Qual a sua posição diante do fato de que os astrólogos admitem um quadro psicológico existente desde os nascimento, enquanto os psicanalistas explicam a etiologia das neuroses a partir de experiências da primeira infância?

d.A astrologia traz o conceito de um tempo qualitativo no universo. O senhor aceita seu papel na psique individual (problema de ciclos e passagens)?

e.No transcurso do tratamento analítico, o senhor observou que fases típicas de estagnação ou de progresso coincidiram com certas constelações astrológicas, por exemplo, passagens?

f.Qual é a sua principal crítica aos astrólogos?

g.Qual a nova orientação que aconselharia para a astrologia?

(2)Os símbolos astrológicos introduzidos à mão por Jung faltam nesta cópia da carta.

(3)Cf. carta a Whitmont, 04 de março de 1950, nota 3.

(4)Cf. “Em memória de Richard Wilhelm”, em Jung-Wilhelm, O segredo da flor de ouro, 1957 e OC, Vol. XV, § 81s:”O que nasce ou é criado num dado momento adquire as qualidades deste momento”.

(5)Cf. carta a Jaffé, de 08 de setembro de 1950, nota 2.

(6)Cf. carta a Bender, de 10 de abril de 1958.

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