Kassel-Wilhelmshöhe/Alemanha, 07 de dezembro de 1954.
Prezado
Doutor,
É
muita gentileza sua submeter o seu manuscrito (1) à minha opinião. (...)
Concordo
com o senhor que o crente nada vai aprender de meu Resposta a Jó, pois ele já possui tudo. Desde minha tenra juventude
fui levado a sentir que os crentes são ricos e sábios e muito pouco inclinados
a escutar outra coisa qualquer. Reconheço francamente minha extrema pobreza no
conhecimento pela fé e sugiro-lhe que feche estrondosamente o meu Reposta a Jó e escreva na capa como
texto de orelhas o seguinte: “Aqui não há nada de proveitoso para o cristão que
tem fé”. Estou de pleno acordo.
Realmente,
eu não abordo o que é “crível”, mas apenas o que é
cognoscível. Parece-me que não estamos em condições de “gerar” ou “manter a
fé”, pois ela é um carisma que Deus dá ou retira. Seria presunção imaginar que
podemos decidir sobre ela.
Por questão de brevidade, meus
comentários são algo diretos e espontâneos. Espero que não os leve a mal, mas
perceba como são diferentes os dois planos em que se move a discussão. Sem
atentar contra a fé, eu me restrinjo às suas afirmações. Como o senhor vê, eu
tomo a sério até o novo dogma, altamente controverso (2). Não me julgo
competente para discutir a verdade metafísica dessas afirmações, apenas tento
esclarecer seu conteúdo e suas conexões psicológicas. Como o senhor mesmo
admite, as afirmações são antropomórficas e por isso não podem ser consideradas
confiáveis quanto à sua verdade metafísica. Na condição de crente, o senhor
acha que a afirmação “Deus é” tem como corolário inevitável que Deus existe
realmente, quando Kant já demonstrou irrefutavelmente (em sua crítica à prova
anselmiana de Deus (3) que a palavrinha “é” nada mais significa do que uma
“cópula no julgamento”.
Também outras religiões fazem
afirmações absolutas, mas são bem diferentes. Como psicólogo e pessoa humana
devo admitir que meu irmão talvez possa ter razão. Não pertenço aos electi e aos beati possidentes da única verdade, mas devo levar em justa
consideração todas as afirmações humanas, inclusive a negação de Deus. Se o
senhor viver a mim como apologeta cristão, estará em outro plano que não o meu.
O senhor se fixa no “conhecimento da fé”; neste caso eu levo sempre a pior,
pois “de fide non est disputandum” (4)., como não se discute gosto. Não se pode
argumentar com o dono da verdade. Só aquele que busca precisa de reflexão,
pesquisa e ponderação, pois ele reconhece seu pouco conhecimento. Como crente,
o senhor só pode me rejeitar e condenar como não cristão, sendo inútil e
prejudicial tudo o que eu digo. Bem, a pólvora foi um invenção perigosa,
apologeticamente condenável, mas encontra também um uso benéfico. Tudo pode
servir a um fim benéfico ou malévolo. Por isso não havia razão plausível para
eu me calar, sem considerar o fato de que a “cristandade” de hoje dá muito que
pensar. Na qualidade de médico devo dar a muitas pessoas aquelas respostas que
o teólogo deveria dar.
Eu já pedi humildemente aos
teólogos que me esclarecessem a posição do protestantismo moderno sobre a
questão da identidade do conceito de Deus no Antigo e no Novo Testamento. Dois
nem me responderam, e um terceiro me disse que nos tempos atuais ninguém estava
preocupado com o conceito de Deus. Mas para a pessoa interessada na religião
isto é uma questão palpitante e que foi um dos motivos de eu escrever Resposta a Jó. Gostaria de recomendar à
sua atenção o escrito do Prof. Volz, Das
Dämonische in Jahwe, e com relação ao Novo Testamento coloco a pergunta: É
necessário apaziguar um “Pai amoroso” pelo martírio de seu Filho? Qual é a
relação aqui entre o amor e o rancor? Como eu me sentiria se meu próprio pai
apresentasse tal fenomenologia?
Estas são as perguntas da pessoa
descrente da religião para a qual eu escrevo. Para ela vale o princípio amável
(predestinador) de Mateus 13.12: “A quem tem, será dado” etc. “Illis non est
datum” (5) (v. 11), precisamente a essas ovelhas perdidas para as quais Cristo
teria sido exclusivamente enviado,
conforme afirma outro logion
igualmente autêntico (6). Quem não consegue crer gostaria ao menos de entender:
“putasme intelligis quae legis?” (7) (Atos 8.30). O entender começa bem ao pé
da montanha, em cujo topo se encontra aquele que tem fé. Ele sabe tudo muito
melhor pela fé e por isso pode dizer: “Agradeço-vos, Senhor, não ser tão tolo e
ignorante como aqueles lá embaixo que querem entender alguma coisa” (cf. Lucas 18.11). Eu não posso antecipar
algo com uma crença, mas devo contentar-me com minha descrença até que meu
esforço se encontre com a graça da iluminação, isto é, com a experiência
religiosa. Eu não posso produzir fé.
Para finalizar, uma pergunta
idiscreta: O senhor não acha que o anjo do Senhor, ao lutar com Jacó, também
não levou alguns socos e pontapés bem aplicados? (8) (Isto vai em acréscimo à
minha crítica “escandalosa” de Javé). Sei que Resposta a Jó significa um choque pelo qual eu deveria polidamente
me desculpar (por isso minha epígrafe, p. 5).
Atenciosamente, C. G. Jung.
P.S. Ficaria grato se me enviasse
oportunamente alguns exemplares da revista que vai publicar o seu artigo.
(1)Como
não foi possível encontrar o manuscrito, as três primeiras páginas da carta,
com os comentários, ficam incompreensíveis e por isso foram omitas.
(2)O
dogma da Assunção de Maria, Munificentissimus
Deus, 1950.
(3)A
chamada “prova ontológica de Deus”, de Anselmo de Cantuário, 1033-1109, faz a
existência de Deus deriva da ideia de Deus (non
potest esse in intellectu solo, não pode estar apenas no intelecto). Tomás
de Aquino argumentava que não se pode concluir de uma ideia para a realidade.
Cf. Tipos psicológicos, Vol. 6, §
53s. Kant critica a prova anselmiana de Deus no capítulo “Dialética
transcendental”, em Crítica da razão pura.
Cf. Tipos psicológicos, Vol. 6, § 57
s.
(4)
Sobre fé não se discute.
(5)Mateus
13.11 – “... mas a esses não é dado”.
(6)Mateus
9.13 – “...porque não vim para chamar os justos, mas os pecadores” – Cf. também
Marcos 2.17 e Lucas 5.32.
(7)“Porventura
entendes o que lês?”
(8)Gênesis
32.24s, Cf. Memórias, p. 297.
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