Avançar para o conteúdo principal

Alwine von Keller (Ascona)


02 de janeiro de 1949

"Prezada e distinta senhora, estou em Bollingen, e sua carta chegou num momento propício, de modo que posso respondê-la já.
Não é de admirar que estejamos dispostos a um olhar retrospectivo no final do ano, ainda mais quando estamos bem longe dos anos da juventude.
Também eu estou numa fase retrospectiva e me ocupando intensamente comigo mesmo - a primeira vez em 25 anos - coletando e organizando os meus velhos sonhos. Há muita coisa estranha entre eles. Estou impressionado com o fato de que sabemos muito pouco sobre o "inconsciente" (abençoado seja este termo sem preconceitos!).
[...] Meu estado de saúde, com meus altos e baixos, tem muito a ver com o fato de eu ainda não saber bem o que se pode ou não pode fazer aos quase 74 anos de idade. A minha última doença foi sobrecarga de trabalho. Todo dia tenho de dizer a mim mesmo várias vezes: "não demais! Passo de lesma, seguido de períodos de descanso e mudança da parelha de lesmas (1).
Apesar disso consegui terminar um novo trabalho sobre as mandalas (2), que deverá sem publicado no decorrer deste ano.
[...] Devo cuidar ainda de meu fígado. Sou como um carro velho, com 250.000 km rodados e que não conseguiu ainda convencer-se da potência de seus vinte cavalos de força. Consola-me, porém, o fato de que só um louco espera alcançar a sabedoria.
Receba os meus melhores votos para o Ano Novo.
C. G. Jung".

(1) No inverno de 1943-1944, Jung sofrera uma trombose coronária que quase lhe custou a vida. Durante sua doença, Jung experimentou uma série de visões, descritas em Memories, Dreams, Reflections, que também influenciaram significativamente o desenvolvimento de seu pensamento teórico. Em 27 de setembro de 1944, a tradutora de textos indianos e psicanalista Alwine von Keller (1878-1965) fez uma visita a Jung, enquanto ainda estava em convalescença, em Zurique e documentou seu encontro com ele em uma série de anotações, recentemente descobertas, que testemunham o fato. que, na época de seu encontro, Jung estava empenhado em escrever o capítulo "Sal" do Mysterium coniunctionis e investigar o simbolismo alquimista do "mar". Este tema parece testemunhar uma continuidade de interesses em Jung ' É parte do seminário que ele realizou em Eranos no ano anterior sobre a arte cartográfica de Opicinus de Canistris (1296-c.1352). Com a adição de muitos detalhes inéditos, as anotações de Alwine von Keller complementam o relatório que Jung fez de suas visões vivenciadas durante sua doença no MDR. Em particular, estes atestam o fato de que Jung atribuiu a terrível experiência que ele havia suportado ao problema da conjunctio, que estava confrontando-o do ponto de vista teórico em seus escritos de Mysterium coniunctionis.
(2) Sobre o simbolismo da mandala - Obras Completas: Vol. IX/1.
Fontes:
C. G. Jung. Cartas: 1946-1955 (Vol. II). Petrópolis: Vozes, 2002: 120-121.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21434902


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Aniela Jaffé (Zurique)

Carta à Aniela Jaffé (Zurique) “Bollingen,  12 de abril de 1949. Prezada Aniela, (...) Sua carta chegou num período de reflexões difíceis. Infelizmente nada lhe posso falar a respeito. Seria demais. Também eu ainda não cheguei ao final do caminho do sofrimento. Trata-se de compreensões difíceis e penosas (1). Após longo vagar no escuro, surgiram luzes mais claras, mas não sei o que significam. Seja como for, sei por que e para que preciso da solidão de Bollingen. É mais necessária do que nunca. (...)            Eu a parabenizo pela conclusão de “Séraphita” (2). Ainda que não tivesse aproveitado em nada a Balzac desviar-se do si-mesmo, gostaríamos de poder fazê-lo também. Sei que haveríamos que pagar mais caro por isso. Gostaríamos de ter um Javé Sabaoth como kurioz twn daimonwn (3). Compreendo sempre mais porque quase morri e vejo-me forçado a desejar que assim tivesse sido. O cálice é amargo. Saudações cordiai...

To Dr. Edward A. Bennet

  To Dr. Edward A. Bennet, (1) Londres, 21 de novembro de 1953.   My dear Bennet, Muito obrigado pelo gentil envio do livro de Jones sobre Freud. O incidente à página 348 é correto, mas as circunstâncias em que ocorreu estão desvirtuadas (2). Trata-se de uma discussão sobre Amenófis IV: o fato de ele ter raspado dos monumentos o nome de seu pai e colocado o seu próprio; segundo modelo consagrado, isto se explica como um complexo negativo de pai e, devido a ele, tudo o que Amenófis criou – sua arte, religião e poesia – nada mais foi do que resistência contra o pai. Não havia notícias de que outros faraós tivessem feito o mesmo. Mas esta maneira desfavorável de julgar Amenófis IV me irritou e eu me expressei de maneira bastante vigorosa. Esta foi a causa imediata do desmaio de Freud. Ninguém nunca me perguntou como as coisas realmente aconteceram; em vez disso faz-se apenas uma apresentação unilateral e deformada de minha relação com ele. Percebo, com grande interesse, q...

To Dr. Michael Fordham (1)

Londres, 18 de junho de 1954.   Dear Fordham, Sua carta traz más notícias; senti muito que não tenha conseguido o posto no Instituto de Psiquiatria (2), ainda que seja um pequeno consolo para o senhor que tenham escolhido ao menos um de seus discípulos, o Dr. Hobson (3). Depois de tudo, o senhor se aproxima da idade em que a gente deve familiarizar-se com a dolorosa experiência de ser superado. O tempo passa e inexoravelmente somos deixados para trás, às vezes mais e às vezes menos; e temos de reconhecer que há coisas além de nosso alcance que não deveríamos lamentar, pois esta lamentação é um remanescente de uma ambição por demais jovem. Nossa libido continuará certamente querendo agarrar as estrelas, se o destino não tornasse claro, além de qualquer dúvida razoável, que devemos procurar a perfeição dentro e não fora... infelizmente! Sabemos que há muito a melhorar no interior da pessoa, de modo que devemos agradecer à adversidade quando ela nos ajuda a reunir a energia ...