Monsieur Le Docteur Henri Flournoy (1) (Genebra)
29 de março de 1949.
Cher Confrère,
Acabo de
ler o seu simpático relatório sobre o meu trabalho. Agradeço o interesse que
dedicou à exposição objetiva de minhas ideias.
Fiquei muito
interessado nas referências que fez aos arquétipos no epílogo de seu trabalho. Ao
que me parece, há aqui alguns mal-entendido. Não nego a existência de fatos que
Freud demonstrou. Não acredito em teorias e não tenho a intenção de substituir
a teoria dele por outra. Meu objetivo é mostrar fatos novos; por exemplo, a existência
de arquétipos, uma existência que já foi reconhecida por outras ciências: na
etnologia como “représentations collectives” (Lévy-Bruhl), na biologia
(Alverdes), na história (Tonybee), na mitologia comparada (Kerényi, Tucci,
Wilhelm e Zimmer que representam a Antiga Grécia, Tibet, China e Índia) e no
folclore como “motivos”. O conceito biológico muito conhecido de “pattern of
behaviour” é sinônimo de arquétipo na psicologia. Conforme indica claramente o
próprio conceito “arquétipo”, a ideia em si não é nova, pois já se encontra no
mesmo sentido em Filo Judeu, no Corpus Hermeticum e em Dionísio Areopagita.
Creio haver demonstrado que é possível constatar o arquétipo não só na “migração
dos símbolos” (2), mas também nas fantasias individuais a partir do
inconsciente de qualquer pessoa. Esta descoberta é minha. As provas disso eu as
apresentei em vários volumes bem grossos que, infelizmente, ainda não foram
publicados em francês.
Segundo penso,
a ideia de um “pattern of behaviour” psíquico não é de todo espantosa, pois a
similaridade de produtos psíquicos autóctones foi admitida pelo próprio Freud. Dele
é a honra de haver descoberto o primeiro arquétipo, o complexo de Édipo.
Trata-se de um motivo que é tanto mitológico quanto psicológico. Naturalmente é
um e mesmo arquétipo aquele que representa a relação entre o filho e os pais. Mas
deve haver outros arquétipos em ação, pois temos também a relação entre filha e
pais, a relação entre pais e filhos, entre homem e mulher, entre irmão e irmã,
etc. É bem provável que existam também “patterns” representando as diferentes
idades da pessoa, nascimento e morte, etc. Há uma grande quantidade de situações
típicas, cada qual representada por certa forma inata que força o indivíduo a
funcionar de uma maneira humana específica. As formas estruturais
correspondentes obrigam os pássaros a construir seu ninho de um determinado
modo. O instinto assume uma forma específica inclusive na pessoa humana. Esta forma
é o arquétipo, assim denominado porque o pensamento inconsciente se expressa
mitologicamente (ver Édipo). Nada mais faço do que levar adiante o que Freud
começou. Lamentei muitas vezes que a escola de Freud não soubesse dar
prosseguimento à feliz descoberta de seu mestre.
Ao ler o
seu epílogo, perguntei-me se o senhor duvidava de minha qualificação e
competência científicas, conforme costumam fazer os freudianos. Gostaria de
admitir que sua crítica tem fundamento. Infelizmente, porém, não sei em que
fatos ela se baseia; seria muito útil para mim conhecê-los. Até agora ninguém conseguiu
provocar que minha hipótese está errada. Certamente Freud nunca pensou que era
preciso conhecer a mitologia grega para ter um complexo de Édipo (nem eu). A existência
de um arquétipo, isto é, a possibilidade de se desenvolver um complexo de Édipo
não depende obviamente de mitologemas históricos. Onde está o erro lógico desse
raciocínio?
Nunca consegui
detectar a mínima diferença entre a fantasia incestuosa grega e moderna. Sem dúvida
esta fantasia é, por assim dizer, universal; e certamente não é a única que
pode ser expressa num mitologema. Não é provável a conclusão de que se trata de
uma disposição instintiva, comum a todas as pessoas e inata, como é o instinto
em todos os animais? De que outra maneira poderíamos explicar configurações idênticas
ou análogas em clãs ou indivíduos que não poderiam saber nada a respeito da existência
de formas paralelas? O senhor acredita realmente que cada pintinho inventa de
novo a maneira de sair do ovo? Acredita o senhor que cada enguia toma uma decisão
individual quando segue o caminho das Bermudas, como se isto fosse uma ideia
completamente nova? Por que não levar em consideração os fatos bem documentados
que apresento em meus estudos sobre a alquimia? Mas esses livros não são lidos,
e as pessoas se contem com preconceitos bem infantis como, por exemplo, de que
falo de ideias herdadas (3) e de outras asneiras.
Ao mesmo
tempo que admiro sua maneira conscienciosa de expor meus ensaios, constato com
pesar que o senhor apresentou uma referência tão enganadora sem a menor prova
ou explicação. Em conclusão ao seu belo esforço de rigorosa objetividade, teria
bastado uma confissão de sua fé freudiana para aliviar a sua consciência. Parece-me
que o senhor poderia ter feito isso sem desqualificar-me como herético.
Não costumo
escrever este tipo de carta mas julguei necessário fazer uma exceção devido à
estima pessoal que sempre caracterizou o meu relacionamento com seu pai e com o
senhor mesmo.
Agréez, Cher
Confrère, l’expression de mes sentiments les meilleurs, C. G. Jung.
(1)Dr.
Henri Flournoy, filho do psiquiatra genebrês Prof. Theodore Flournoy
(1854-1920). Sobre Théodore, “estimado amigo paternal” de Jung, ver Memórias,
Sonhos, Reflexões, p. 324).
(2)
Segundo a teoria da migração, a concordância de mitos e símbolos nos diversos
povos é explicada pela transmissão externa. Jung indica outra possibilidade de explicação:
a concordância acontece pelo surgimento espontâneo e sempre repetido de motivos
em razão de arquétipos, que são iguais em toda parte, no inconsciente coletivo
das pessoas. Cf. “O significado da constituição e da herança para a psicologia”,
Obras Completas: Vol. VIII, § 228.
(3)
Somente a forma estrutural não determinada quanto ao conteúdo (do arquétipo em
si) é hereditária. As representações arquetípicas múltiplas nos mitos, contos
de fadas, sonhos, etc. surgem sempre novas como variantes individuais e
condicionadas ao meio ambiente daquelas formas estruturais.
Fonte: C. G. Jung. Cartas: 1946-1955 (Vol. II). Petrópolis: Vozes, 2002: 130-132.
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