Ao Dr. Edward Whitmont
(1)
Nova Iorque,
04 de março de 1950.
Prezado colega,
Li com muito interesse
o escrito que me enviou. A maneira como o senhor aborda o problema do
paralelismo psicofísico parece-me correta em sua essência – ao menos enquanto
posso julgá-lo do ponto de vista psicológico.
A dificuldade com que
se defronta este problema está no seguinte: aquilo que conseguimos perceber
psicologicamente nunca vai fundo o bastante para reconhecermos sua conexão com
o físico. E vice-versa, o que conhecemos fisiologicamente não está
suficientemente adiantado para sabermos o que poderia ser a ponte para o
psicológico. Se fizermos a abordagem pelo lado psicológico, chegaremos àqueles
fenômenos que eu chamei de arquétipos. Se não estiver enganado, estas formações
irrepresentáveis correspondem em todo o seu comportamento aos “patterns of
behaviour” da biologia, uma vez que parecem representar as formas básicas do
comportamento psíquico em geral. Para saber o que estas formas são em si
mesmas, precisaríamos ser capazes de penetrar no mistério total da psique. Mas
ela nos é totalmente inconsciente porque a psique não pode apreender a si
mesma. Aqui só podemos apalpar cuidadosamente a fenomenologia que nos informa
sobre a essência da psique. De forma semelhante – por outro lado – a física
entra num campo irrepresentável que ela só consegue visualizar indiretamente e
através de modelos. Ambas as ciências, a psicologia do inconsciente e a física
atômica, estão chegando a formas conceituais que concordam de maneira impressionante.
Quero lembrar apenas o conceito de complementaridade (2).
Se levarmos em
consideração tudo o que se refere à psique, chegaremos à conclusão de que a
psique inconsciente se encontra também num contínuo de espaço e tempo em que o
tempo já não é tempo e o espaço já não é espaço. E consequentemente ali deixa
de existir também a causalidade. A física se defronta com o mesmo limite. Uma
vez que uma das linhas de pesquisa vai de dentro para fora e a outra, de fora
para dentro, e que não há esperança de chegarmos ao ponto em que as duas se
encontram, só nos resta procurar pontos de comparação entre as concepções mais
profundas de ambos os lados. Mas é precisamente aqui que está a dificuldade
acima indicada: nosso conhecimento dos instintos, isto é, dos impulsos
biológicos subjacentes é precário, de modo que só podemos harmonizar com a
maior dificuldade e incerteza os arquétipos com os impulsos conhecidos da
biologia. E quando se chega à química do albume, cessa, a meu ver, qualquer
possibilidade de comparação.
Mas existe certa
possibilidade que eu não queria perder de vista, isto é, a sincronicidade.
Basicamente ela não é outra do que correspondentia
(3), entendida mais específica e precisamente, e que, como se sabe, era um dos
elementos medievais para explicar a natureza. Seria concebível – e há fatos que
apontam nesta direção – que uma situação arquetípica se refletisse também em
processos corporais. Já encontramos, por exemplo, no livro dos sonhos de
Artemidoro (4) o caso de alguém sonhar que seu pai havia perecido num incêndio
e, poucos dias depois, o próprio sonhador morrer consumido por uma febre muito
alta. Eu já vi coisas semelhantes. Estas correspondências podem ir mais longe e
dar origem às mais curiosas e significativas coincidências. Esta questão só
pode ser respondida de algum modo satisfatório se analisarmos sistematicamente
os sonhos de pessoas fisicamente doentes. Então poderíamos ver que motivos
oníricos correspondem a determinados estados corporais. Mas não foram feitos
ainda estudos neste sentido.
O seu enfoque vai mais
ou menos nesta linha. Como se sabe, foi Paracelso que trabalhou muito com estas
ideias. Hoje em dia trata-se de encontrar provas conclusivas para isso. Se
quisermos trabalhar este campo, encontraremos outra grande dificuldade, isto é,
que o método estatístico da ciência, o único a fornecer provas condizentes,
está numa relação de complementaridade com a sincronicidade. Isto quer dizer
que, quando observamos estatisticamente, eliminamos o fenômeno da
sincronicidade; e vice-versa, quando estabelecemos a sincronicidade, devemos
abandonar o método estatístico. Contudo, existe a possibilidade de reunir uma
série de casos isolados de correspondência em que cada caso isolado possa
lançar certa luz sobre o fenômeno da correspondência em geral. Seria, por
exemplo, concebível que o sal tivesse uma propriedade e eficácia biológicas que
correspondesse em certo sentido ao significado simbólico do sal. Mas esta
constatação só poderia ser fundamentada através de uma série maior de
observações isoladas. Eu considero isto um empreendimento bastante difícil, uma
vez que sabemos tão pouco sobre a natureza da sincronicidade que, diga-se de
passagem, nada tem a ver com sincronismo, mas significa coincidência
pertinente, o que não é necessariamente também sincronismo no sentido estrito.
(...)
Se os meus colegas
sabem muito pouco de psicologia, é também tarefa sua ensinar-lhe algo mais.
Como também é tarefa minha ensinar mais psicologia no círculo dos psiquiatras e
psicólogos.
Com a consideração do
colega, C. G. Jung.
(1) Dr. Med. Edward
Whitmont, psicólogo analítico, EUA. Obra, entre outras: The Symbolic Quest,
Nova Iorque, 1969.
(2) O
conceito da complementaridade baseia-se na experiência de que estruturas
microfísicas apresentam aspectos diferentes quando observadas sob condições
experimentais diferentes. Por exemplo, na observação da natureza de onda do
elétron não é possível obter qualquer conhecimento sobre a natureza
corpuscular, e vice-versa. As duas naturezas – onda e corpúsculo – são
complementares. W. Pauli formulou o comportamento complementar da seguinte
forma: “Deixa-se à livre escolha do experimentador (ou observador)... quais os
conhecimentos que deseja adquiri e quais deseja perder; ou, em linguagem
popular, se quer medir A e arruinar B, ou arruinar A e medir B” (cf. OC, Vol.
8, § 440). Relação análoga entre observador e observado encontra-se no conteúdo
do inconsciente: o arquétipo experimenta, através de seu tornar-se consciente e
do ser percebido, uma mudança, e isto no sentido da consciência individual
respectiva na qual ele aparece; por outro lado, uma observação exata do
inconsciente só é possível à custa da consciência. Também entre consciência e
inconsciente há uma relação de complementaridade (cf. carta da Jordan, de
10/11/1934, nota 4, e Aion, OC, Vol. 9/2, § 355). C. A. Meier foi o primeiro a
chamar a atenção para a analogia entre complementaridade física e psicológica
(cf. OC, Vol. 8, § 440). Para o conceito de compensação, muitas vezes
confundido com o de complementaridade, ver carta a Keller, de 26/03/1951, nota
2).
(3) A
correspondência ou simpatia de todas as coisas é uma doutrina filosófica da
Antiguidade que admite haver uma relação e dependência dos conteúdos do cosmos.
Baseia-se na crença de que existe também um princípio divino e universal na
menor parte de algo e que, por isso, ela concorda com todas as outras partes e
com o todo. Jung vê nesta doutrina um precursor da ideia da sincronicidade (cf.
OC. Vol. 8, § 914s).
(4) Artemidoro
de Daldis, século II AC, escreveu nos cinco livros de sua Oneirokritika sobre os sonhos e interpretação dos sonhos. Cf. Jung,
“Zugang zum Unbewussten”, em Der Mensch und seine Symbole, Olten e
Friburgo/BR., 1968, p. 78.
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