À Marie Ramondt
Utrecht/Holanda
10 de março de 1950
Prezada e distinta
senhora,
Ao agradecer o gentil
envio de sua separata (1), gostaria de pedir desculpas pela demora de minha
resposta. Tive de pedir a outra pessoa que lesse o seu texto para mim, pois não
domino bastante o holandês.
Se entendi bem, a
senhora defende a opinião de que o material primitivo não pode ser interpretado
porque não é uma afirmação apenas da psique, mas que o meio ambiente também tem
nisso uma palavra muito importante. Em certo sentido isto é correto. No
primitivo o inconsciente confunde-se com o mundo externo, o que se vê claramente
nas inúmeras projeções da consciência primitiva. Com referência ao primitivo
não se pode falar de uma relação eu-mundo ambiente, pois não existe
praticamente um eu no nosso sentido. Sua consciência é uma imersão num fluxo de
acontecimentos em que o mundo externo e o mundo interno não se diferenciam
claramente. Talvez eu não tenha entendido bem, mas parece-me que este material
pode ser interpretado com a devida consideração às suas condições. Não
evidentemente de tal modo que o significado da cruz cristã pudesse ser aplicado
à visão que um curandeiro primitivo teve da cruz. Isto seria, por assim dizer,
um exagero de retrocesso. O primitivo simplesmente nos aproxima dos fundamentos
arquetípicos do significado posterior da cruz, e na interpretação precisamos
naturalmente levar em conta a mentalidade do primitivo – de que nela o mundo
externo significa tanto quanto o mundo interno, porque no primitivo o
inconsciente está tanto fora quanto dentro.
O inconsciente, como
nós o conhecemos hoje, só veio à existência em sua forma atual através da
diferenciação da consciência. No primitivo, o interior é também um exterior, e
vice-versa. E isto numa medida muito maior do que no nosso caso. Mas é preciso
admitir que para a nossa mentalidade diferenciada a reconstrução daquela
semiconsciência primitiva não é coisa fácil. Quando interpretamos, por exemplo,
histórias primitivas de fadas, cujos conteúdos já estão claramente formados,
esta dificuldade se torna patente, porque percebemos que os objetos têm para o
primitivo aspectos que nem sonhávamos ter. Para interpretar, por exemplo,
visões dos primitivos, é necessário conhecer bem este entrelaçamento do objeto
externo com o estado psíquico. Contudo, há também entre europeus relativamente
primitivos sonhos muito difíceis de interpretar devido a este entrelaçamento.
Mas isto não impede que aqueles motivos que, nos estágios culturais
posteriores, levam a ideias bem formadas sejam encontrados já nas formas mais
primitivas, faltando-lhes, porém, certo cunho de valor e, por isso, uma clareza
correspondente.
Com elevada
consideração, C. G. Jung.
(1) A
senhora Ramondt menciona, em sua carta de dezembro de 1949, um artigo que havia
publicado na revista Volkskunde, da Real Academia de Ciências da Holanda, mas
não diz o título.
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