Para o Pe. Victor White
Oxford
25 de novembro de 1950
Dear Victor,
Agradeço penhoradamente
a gentileza de me enviar um exemplar de The
Life of the Spirit. Li o seu artigo (1) com a maior atenção e interesse. O
senhor conseguiu pôr em máxima evidência a petra
scandali (2). Como sabe, não tenho muito a dizer sobre o “universale” (3),
se me abstiver de tirar conclusões e fazer especulações sobre possíveis
consequências psicológicas do novo dogma. É um assunto fascinante, muito
discutido em Zurique. Provocou em mim uma série de sonhos ligados a
desenvolvimentos ulteriores, isto é, consequências da nova situação.
Contrariamente à minha expectativa, a declaração mexeu com algo no
inconsciente, ou seja, no mundo arquetípico. Parece ser o motivo do
hierosgamos; a árvore derrubada foi trazida para dentro da gruta da mãe, neste
caso: o bojo de um navio. Ela ocupa tanto espaço que as pessoas que moram na
gruta são obrigadas a sair e viver do lado de fora, expostas ao vento e ao
tempo. Este motivo refere-se à virgem-marítima-noturna do herói no ventre do
grande peixe-mãe.
O “universale”, como o
senhor coloca muito bem, é o aspecto mais interessante do dogma. O
“particular”, por sua vez, é aquilo que me tira o fôlego, o que o senhor
certamente entenderá. Se o milagre da Assunção não for um acontecimento
espiritual, vivo e presente, mas consistir num fenômeno físico que se diz ou
que se crê ter acontecido há quase dois mil anos, então ele nada tem a ver com
o espírito, ou tão pouco quanto qualquer evento parapsicológico de nossa época.
Um fato físico nunca prova a existência e realidade do espírito. Ele apenas
tenta concretizar o espírito numa visibilidade material. Certamente a vida e
realidade do espírito não são demonstrados de modo nenhum pelo fato de que há
dois mil anos um corpo desapareceu ou que outros milagres aconteceram. Por que
insistir na realidade histórica desse caso particular de um nascimento virginal
e negá-la a todas as outras tradições mitológicas? Esta insistência é
particularmente curiosa porque nada acrescenta ao significado da ideia; ao
contrário, desvia o interesse do importantíssimo aspecto espiritual para um
fenômeno físico, questionável e totalmente irrelevante. Só consigo explicar
este típico tour de force como uma tentativa de provar a existência do espírito
para uma mente rude e primitiva, incapaz de perceber a realidade psíquica de uma
ideia, uma mente que precisa de milagres como evidencia de uma presença
espiritual. É mais que provável que a ideia viva da Assunção não começou a
atuar nos tempos apostólicos, mas bem mais tarde. É comprovado que o milagre da
Assunção só começou a operar a partir do século VI. Se a Assunção significa
alguma coisa, então ela significa um fato espiritual que pode ser formulado
como a integração do princípio feminino na concepção cristã da divindade. (A declaratio solemnis do novo dogma) é
certamente o acontecimento religioso mais importante dos últimos 400 anos.
Envio anexo um artigo
que apareceu em Neue Zücher Zeitung (5). Ele não insiste na historicidade
concretista do milagre, mas na natureza cristã da ideia. Ainda não vi o texto
da “definição”. Poderia o senhor emprestar-me uma cópia? Devolva-me, por favor,
o artigo, pois quero guardá-lo. A julgar por este artigo, a “definição” não
insiste na realidade, mas antes na crença
na realidade da Assunção e, portanto, na realidade da ideia. Assim como senhor coloca a questão, soa mais
como crasso materialismo, o que levanta as mais veementes objeções. Se a
Assunção é um fato histórico, essencialmente concreto, então não é uma
experiência espiritual viva. Degenera num efeito meramente sincronístico do
passado, tão interessante e curioso como o arrebatamento ao céu de Elias (6),
ou o sensacional desaparecimento de Enoc (7). É simples desvio do verdadeiro
problema, isto é, da Assunção como símbolo; pois o único fator real e
importante é o arquétipo vivo que força sua entrada na consciência. Insistindo
na historicidade, arrisca-se não só questões embaraçosas e irrespondíveis, mas leva-se
os outros a desviar os olhos da ideia essencial para a crueza realista de um
fenômeno meramente físico, pois é apenas o fenômeno físico que acontece num
lugar e tempo determinados, enquanto o espírito é eterno e está em toda parte.
Até mesmo o corpus subtile está apenas relativamente dentro do tempo e do
espaço. Se designarmos a Assunção como um fato no tempo e no espaço, deveríamos
acrescentar que ele acontece realmente na eternidade e em toda parte; o que nós
percebemos com os nossos sentidos é matéria corruptível, isto é, não o vemos,
mas inferimos a ideia ou acreditamos nela. A conclusão levou não menos de 1.900
anos para o seu final. Sob essas condições parece-me despropositado insistir na
historicade concreta. Mas se o senhor disser: creio que Maria, dotada de seu corpus gloficationis (isto é,
caracterizada por uma determinação quase “corporal”), alcançou seu lugar perto
da divindade, então posso concordar com o senhor. Esta parece ser também a
opinião do professor Karrer e, como ele diz, Maria não teria sido a única (que
foi assunta ao céu). Parece haver certo consenso tradicional de que uma vida
plenamente religiosa (isto é, uma integração consciente do arquétipo essencial)
justifica a esperança de uma existência individual na eternidade. Estender esta
consideração a Maria, parece-me estar bem dentro do espírito da filosofia
cristã.
Yours cordially, C. G.
(1) Victor White, “The Scandal of the Assunption”,
em Life of the Spirit, Blackfriars Review, vol. V, Londres,
novembro-dezembro 1950. Trata-se de um número especial da revista, com o título
“The Assunption in the Life of the Christian”.
(2) Pedra de escândalo, Isaías 8,14. O padre White
dirige-se em seu artigo àqueles fiéis para os quais a proclamação do dogma da
Assunption Mariae, a assunção corporal de Maria ao céu (agosto de 1950),
significa uma pedra de escândalo. A “declaratio solemnis” do dogma,
Munificentissimus Deus, aconteceu no dia 1.11.1950, após a publicação do artigo
do padre White.
(3) Um capítulo do artigo do padre White
intitulava-se “The Sacandal of Paritularity” e trata da Assunção da Virgem
Maria como de uma personalidade individual. Um outro capítulo, “The Scandal of
Universality”, aborda a crítica contra o sentido geral e cósmico da Assunção de
Maria (contra o aspecto arquetípico).
(4) A relação do sonho com o motivo do hierosgamos
no dogma da Assunção de Maria provém das ideias de Jung sobre o culto a Átis;
assim como a árvore de Átis é levada para dentro da gruta da deusa-mãe Cibele,
também a árvore, no sonho de Jung, é levada para dentro do bojo do navio,
interpretado como materno-feminino. Jung vê em ambos os casos um símbolo da
conjunção de mãe e filho, uma analogia ao hierosgamos de Cristo e Maria.
(5) Otto Karrer, “Das neue Dogma und die Bibel”,
Neue Zürcher Zeitung, 26.11.1950.
(6) II Reis 2.1-12.
(7) Gênesis 5.24.
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