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A Heinrich Boltze

 

Müsterlager/Alemanha, 13 de fevereiro de 1951.

 

Prezado senhor,

Para sua orientação: eu sou psiquiatra e não filósofo, um simples empírico que se preocupa com certas experiências. Psique é para mim um coneito coletivo para a totalidade dos chamados processos psíquicos. Espírito é uma qualidade atribuída a certos conteúdos psíquicos (à semelhança de “material” ou “físico”). Atlântida: um fantasma mítico. L. Frobenius: um original imaginativo e um tanto crédulo. Grande coletor de material. Como pensador, menos bom.

Deus: uma experiência interna, não discutível como tal, mas impressionante. A experiência psíquica tem duas fontes: o mundo externo e o inconsciente. Toda experiência direta é psíquica. Há experiência fisicamente transmitida (mundo exterior) e experiência interiormente transmitida (espiritual). Uma é tão válida quanto a outra. Deus não é uma verdade estatística, por isso é tão estúpido querer provar sua existência, quanto negá-la. Quando alguém está feliz, não preciso para isso de nenhuma prova ou contraprova. Também não há razão para se presumir que a “felicidade” ou “tristeza” não podem ser experimentadas. Deus é uma experiência universal que só é obscurecida por um racionalismo imbecil ou por uma teologia igualmente imbecil (confira para isso o meu livrinho Psicologia e Religião, Rscher-Verlag, Zurique, 1940, onde encontrará alguma coisa sobre o assunto).

O que a humanidade chama “Deus” desde tempos imemoriais a gente o experimenta todo dia. Só que lhe damos um outro nome, por assim dizer “racional”, como por exemplo, “afeto”. Desde sempre ele foi o psiquicamente mais forte, capaz de lança para fora dos trilhos nossas intenções conscientes, frustrá-las e às vezes reduzi-las a estilhaços. Por isso, não poucos têm medo de “si mesmos”. Nesse caso, Deus se chama “eu mesmo”, etc. o mundo externo e Deus são as duas experiências primordiais, uma tão grande quanto a outra, e ambas possuem milhares de nomes que em nada mudam os fatos. As raízes de ambas são desconhecidas. A psique é o espelho das duas. Ela é sem dúvida o ponto em que as duas se tocam. Por que perguntar por Deus? Ele se agita dentro de nós e nos leva às especulações mais singulares.

Falamos de fé quanto perdemos um conhecimento. Crença e descrença são meros sucedâneos. O primitivo ingênuo não crê, ele sabe, pois a experiência interna tem para ele o mesmo valor que a externa. Ele ainda não tem teologia e não se deixou engabelar por conceitos ladino-tolos. Traça sua vida – forçosamente – de acordo com os fatos externos e internos que ele não experimenta como distintos, como nós o fazemos. Ele vive em um só mundo, nós vivemos apenas numa de suas metades e acreditamos, ou não, na outra metade. Nós a tapamos com o chamado “desenvolvimento intelectual”, isto é, vivemos com a luz elétrica que nós mesmos fabricamos e – o que é mais ridículo – acreditamos ou não acreditamos no Sol.

Em Paris, Stalin teria sido “une espécie d’existentialiste” como Sartre, um doutrinário desalmado. O que em Paris provoca uma nuvem de comentários, na Ásia faz o chão tremer. Em Paris é possível um potentado arvorar-se em encarnação da razão, em vez de encarnação do Sol.

Com elevada consideração, C. G. Jung.

 

(1) O destinatário havia formulado a Jung uma série de perguntas, entre as quais, a diferença entre psique e espírito, sobre Deus, etc. Além disso manifestou seu pesar por Stalin não ter nascido em Paris.

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