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Ao Dr. H.

 

 

Alemanha, 17 de março de 1951.

 

Prezado Doutor,

Para responder sua longa e profunda carta é preciso ter tempo. Por isso minha resposta está um pouco atrasada.

A psicologia como ciência natural deve reservar-se o direito de tratar como projeções todas as afirmações que não podem ser verificadas com os meios empíricos. Esta limitação epistemológica nada prova a favor ou contra a possibilidade de um transcendental. A projeção é um instrumento indispensável do conhecimento. Parece-me de grande importância histórico-simbólica que a projeção cristológica se tivesse atido ao homem Jesus “histórico”. A crença no homem concreto foi necessária, caso contrário não teria sido possível a tão importante encarnação de Deus. A concepção já delineada na tradição de Osíris, de um Osíris (1), pertencente ao indivíduo, continua na ideia judeu-cristã da imago Dei e na ideia do uiothz (2). O docetismo foi um recuo para a visão pagã do mundo. a tentativa de desmitologização de Bultmann é uma consequência do racionalismo protestante e eleva a um empobrecimento crescente do simbolismo. O que sobra já não basta para exprimir o mundo tão rico (e tão perigoso) do inconsciente e ligá-lo à consciência ou, conforme o caso, afastá-lo dela. Assim, o protestantismo se torna ainda mais enfadonho e depauperado do que já era. Também continuará se dividindo como antes, o que é a intenção inconsciente de todo o exercício. Com a  Reforma já perdeu uma perna, o ritual indispensável. Desde então está sobre a outra perna hipertrofiada, a fé, que assim fica sobrecarregada e, aos poucos, vai ficando inacessível. Com este desfolhamento da árvore dos símbolos, a religião torna-se aos poucos assunto privado; mas quanto maior a pobreza espiritual do protestante, mais chance ele tem de descobrir o tesouro em sua própria psique. Seja como for, ele tem melhores perspectivas neste sentido do que o católico que ainda se encontra na posse plena de uma religião realmente coletiva. Sua religião ainda se desenvolve a olhos vistos. A A.B.V.M. (3) é exemplo eloquente disso. É o primeiro passo no cristianismo para chega à totalidade, isto é, à quaternidade. Temos agora a velha fórmula 3+1 (4), em que o 1 representa 98% de uma deusa ou ao menos uma mediadora coordenada com a Trindade.

Os sonhos relacionados com a Assunção são extremamente interessantes: eles indicam que por trás da luna plena ou da mulher-sol (5) levanta-se a lua nova escura, com seu mistério do hierosgamos e do mundo ctônico da escuridão. Por isso, já no século XVI, o alquimista Gerardo Dorneo atacou violentamente a quaternidade (Cf. Psicologia e Religião) (6), pois através de sua aceitação o “binarius” (=demônio) haveria de romper a Trindade, via princípio feminino que é expresso exatamente pelos números 2 e 4 (7). O Papa fez bem em desencorajar a orientação psicológica (sobretudo dos jesuítas franceses). O cavalo de Troia deveria ficar escondido pelo maior tempo possível. considero por isso a declaração da Assunção o acontecimento histórico-simbólico mais importante dos últimos quatrocentos anos, apesar de todas as ressalvas, e acho lamentáveis todos os argumentos da crítica protestante porque simplesmente ignoram o enorme significado do novo dogma. O símbolo está vivo na Igreja Católica e é alimentado pela psique do povo e até fomentado. Mas no protestantismo ele está morto. Só resta abolir a Trindade e a homoousia (8).

Desde Clemente Romano (9), foi Jacó Böhme que se manifestou de novo adequadamente sobre o sobre o problema do mal. Eu não defendo o reconhecimento do “quarto”. Ele já não precisa hoje em dia de reconhecimento. É evidente demais. Só constato a existência de um problema que é de grande importância histórico-simbólica. Só defendo a reativação do pensamento simbólico devido à sua importância terapêutica e contra a pretensiosa desvalorização do mito, que poucas pessoas conseguem entender.

Não entendo bem por que o senhor chama a aventura de “fé” (10). Uma aventura não é aventura quando se está convencido de que ela terá bom êxito. A aventura acontece quando a gente não sabe nem acredita. Quando sua carruagem tombou, Sta. Teresa de Ávila disse, voltada para o céu: “Agora sei por que tens tão poucos amigos”. Pode acontecer também o mesmo.

Eu só “acredito” quando tenho razões suficientes para uma suposição. Mais do que isso não significa a palavra “fé” para mim. Conheço muito bem os saltos no escuro. Eles têm para mim tudo a ver com coragem e nada a ver com fé, nem tampouco com esperança (ou seja, que tudo sairá bem).

Durante o verão será publicado um novo trabalho meu que trata da história cristã dos símbolos (especialmente da figura de Cristo), com o título Aion. Então estarei maduro para um auto de fé. Posso dizer com Tertuliano: “Novum testimonium advoco immo amini litteratura notius, omini doctrina agitatius... Toto homine maius... Consiste in médio, anima...!” (11). Mas a psique é um anátema para a santa teologia. “Desmitologização”! Que hybris! Lembra a desinfecção do céu com sublimato de mercúrio feita por um médico louco e que, nesta ocasião, (não) encontrou Deus (12). Deus é na verdade o mitologema kat   exochn. Cristo teria sido um filósofo moral, ou o que sobraria dele se não fosse um mitologema?

Saudações cordiais, C. G. Jung.

 

(1) A crença primitiva dizia que os reis egípcios se transformavam no deus Osíris após a morte; pouco a pouco ampliou-se a crença de que cada pessoa possuía “seu Osíris”, em que se transformava após a morte.

(2) Filiação.

(3) Assuption Beatae Virginis Mariae.

(4) Neste contexto, 3 significa a Trindade e 1, o elemento feminino que falta. Segundo a concepção de Jung, realiza-se, através do dogma da Assunção, uma aproximação do feminino com a Trindade masculina; mas não surge uma quaternidade, uma vez que Maria não possui plenamente a qualidade da divindade.

(5) Apocalipse 12.1 – Resposta a Jó, OC Vol. XI, § 711 s.

(6) Cf. também OC, Vol XI, § 104 e 120, nota 11.

(7) Dorneo acha que no segundo dia da criação, ao separar as águas superiores das águas inferiores, Deus criou o binário (dualidade) e, por isso, ao entardecer do segundo dia, não disse – como nos outros dias – “Que tudo era bom” (...) Como a dualidade é feminina, significa também Eva, enquanto a tríade corresponde a Adão. Por isso o diabo tentou Eva em primeiro lugar...” Psicologia e Religião, 1940 (em OC, Vol. XI, § 104, nota 47).

(8) Essência de Deus Pai, de Deus Filho e de Deus Espírito Santo. Cf. “Interpretação psicológica do dogma da Trindade”, em OC, Vol. XI, § 104s).

(9) Clemente Romano (final do século I, Papa Clemente I) disse de Deus que ele mata com a mão esquerda e salva com a direita. Cf. Aion (OC, Vol IX/2, § 104s).

(10)                   Na carta do destinatário a Jung (20/01/1951) falava-se que ele, numa situação de extrema necessidade de vida, chamaria de “fé” o “último salto na profundeza, a aventura da decisão”.

(11)                   Tertuliano, De testimonio animae 1,5: “Eu convoco uma testemunha nova, ou melhor, uma testemunha mais conhecida do que qualquer literatura, mais controvertida do que qualquer doutrina... maior do que qualquer pessoa... Aproxime-se, alma...”

(12)                   Cf. para isso “A psicologia do inconsciente”, OC, Vol. VII, § 110.

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