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Ao Dr. Hans Schär, Pastor

Berna, 16 de novembro de 1951.

Prezado Pastor!

Quero agradecer a sua amável carta. Estou contente por não me ter condenado. O que o magoa foi também para mim um desgosto. Eu queria ter evitado o sarcasmo e a ironia, mas não consegui, pois foi este o meu sentimento. E se não o tivesse dito, estaria de qualquer forma aí oculto, o que teria sido pior. Só percebi mais tarde que eles têm seu lugar como expressões de resistência contra a natureza de Deus que nos coloca em contradição conosco mesmos. Eu tive de soltar-me de Deus, por assim dizer, para encontrar em mim aquela unidade que Deus procura através do ser humano. Isto se parece mais com a visão de Simeão, o teólogo (2), que procurava em vão Deus em toda parte do mundo, até que este surgiu finalmente em seu coração como um pequeno sol. Onde mais poderia a antinomia divina chegar a unidade, a não ser naquilo que Deus preparou para si este fim? Parece-me que só a pessoa que procura realizar a sua humanidade faz a vontade de Deus, mas não aquele que foge da dura realidade de “ser humano” e volta ao Pai antes do tempo, ou nunca deixa a casa do Pai. O tornar-se pessoa humana parece-me ser o anseio de Deus em nós.

O sarcasmo não é realmente uma bela qualidade, mas sou forçado a usar meios que gostaria de rejeitar, para poder livrar-me do Pai. Deus mesmo usa outros meios para estimular as pessoas à consciência. Espero que não tenhamos esquecido o que aconteceu na Alemanha e que acontece todos os dias na Rússia. O sofrimento de Jó não para e propaga-se aos milhões. Não posso passar por cima disso. Enquanto permaneço no Pai, nego-lhe a pessoa humana com a qual ele poderia unificar-se; e minha melhor colaboração não seria tornar-me Um? (Nunguam unum fácies, nisi ex te ipso fiat unum) (3). Deus  certamente não escolheu para filhos aqueles que ficam presos a ele como Pai, mas aqueles que tiveram a coragem de andar com os próprios pés.

Sarcasmo é um meio que usamos para esconder de nós mesmos os sentimentos feridos; daí o senhor pode ver o quanto me feriu o conhecimento de Deus e o quanto teria preferido permanecer uma criança na proteção do Pai e evitar a problemática dos opostos. Talvez seja mais difícil libertar-se do bem do que do mal. Mas sem o pecado não há libertação do bom Pai; nesse caso o sarcasmo desempenha o papel correspondente. Como indico na epígrafe “Doleo supe te” (4), lamento sinceramente ferir sentimentos louváveis. Tive de superar neste aspecto várias hesitações. Além do mais seria eu o prejudicado em relação a uma maioria esmagadora. Todo desenvolvimento e mudança para melhor são sempre cheios de sofrimento. Isto poderiam sabê-lo melhor os da Reforma. Mas o caso é diferente quando eles mesmos precisam de reforma. De um modo ou de outro, certas perguntas precisam ser feitas e respondidas. Sinto ser obrigação minha estimular isto.

Com renovado agradecimento,

C. G. Jung.

(1) Dr. Hans Schär, 1910-1968, professor de Teologia e Psicologia da Religião na Universidade de Berna. Obras, entre outras: Religion und Seele in der Psuchologie C. G. Jungs, Zurique 1946 e Erlösungsvorstellungenm und ihre psychologischen Aspekte, Zurique 1950. Ele oficiou nos funerais da senhora Emma Jung e também falou no funeral de C. G. Jung. Jung refere-se a uma carta do Dr. Schär sobre Resposta a Jó.

(2) Simão, o teólogo, místico da Igreja oriental, por volta de 949-1022.

(3) “Jamais farás com que os outros se tornem o Um, se antes tudo mesmo não te tornares Um”. De Dorneo: “Philosophia meditativa”, tem Theatrum Chemicum, 1602, I, p. 472. Cf. Psicologia e alquimia, 1952; OC, Vol. XII, § 358.

(4) “Quanto estou dolorido por ti” – II Samuel 1.26. Epígrafe de Resposta a Jó.

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