Prezado
Pastor!
Quero
agradecer a sua amável carta. Estou contente por não me ter condenado. O que o
magoa foi também para mim um desgosto. Eu queria ter evitado o sarcasmo e a
ironia, mas não consegui, pois foi este o meu sentimento. E se não o tivesse
dito, estaria de qualquer forma aí oculto, o que teria sido pior. Só percebi
mais tarde que eles têm seu lugar como expressões de resistência contra a
natureza de Deus que nos coloca em contradição conosco mesmos. Eu tive de
soltar-me de Deus, por assim dizer, para encontrar em mim aquela unidade que
Deus procura através do ser humano. Isto se parece mais com a visão de Simeão,
o teólogo (2), que procurava em vão Deus em toda parte do mundo, até que este
surgiu finalmente em seu coração como um pequeno sol. Onde mais poderia a
antinomia divina chegar a unidade, a não ser naquilo que Deus preparou para si
este fim? Parece-me que só a pessoa que procura realizar a sua humanidade faz a
vontade de Deus, mas não aquele que foge da dura realidade de “ser humano” e
volta ao Pai antes do tempo, ou nunca deixa a casa do Pai. O tornar-se pessoa
humana parece-me ser o anseio de Deus em nós.
O sarcasmo
não é realmente uma bela qualidade, mas sou forçado a usar meios que gostaria
de rejeitar, para poder livrar-me do Pai. Deus mesmo usa outros meios para
estimular as pessoas à consciência. Espero que não tenhamos esquecido o que
aconteceu na Alemanha e que acontece todos os dias na Rússia. O sofrimento de
Jó não para e propaga-se aos milhões. Não posso passar por cima disso. Enquanto
permaneço no Pai, nego-lhe a pessoa humana com a qual ele poderia unificar-se;
e minha melhor colaboração não seria tornar-me Um? (Nunguam unum fácies, nisi
ex te ipso fiat unum) (3). Deus
certamente não escolheu para filhos aqueles que ficam presos a ele como
Pai, mas aqueles que tiveram a coragem de andar com os próprios pés.
Sarcasmo
é um meio que usamos para esconder de nós mesmos os sentimentos feridos; daí o
senhor pode ver o quanto me feriu o conhecimento de Deus e o quanto teria
preferido permanecer uma criança na proteção do Pai e evitar a problemática dos
opostos. Talvez seja mais difícil libertar-se do bem do que do mal. Mas sem o
pecado não há libertação do bom Pai; nesse caso o sarcasmo desempenha o papel
correspondente. Como indico na epígrafe “Doleo supe te” (4), lamento
sinceramente ferir sentimentos louváveis. Tive de superar neste aspecto várias
hesitações. Além do mais seria eu o prejudicado em relação a uma maioria
esmagadora. Todo desenvolvimento e mudança para melhor são sempre cheios de
sofrimento. Isto poderiam sabê-lo melhor os da Reforma. Mas o caso é diferente
quando eles mesmos precisam de reforma. De um modo ou de outro, certas
perguntas precisam ser feitas e respondidas. Sinto ser obrigação minha
estimular isto.
Com
renovado agradecimento,
C. G.
Jung.
(1) Dr.
Hans Schär, 1910-1968, professor de Teologia e Psicologia da Religião na
Universidade de Berna. Obras, entre outras: Religion und Seele in der
Psuchologie C. G. Jungs, Zurique 1946 e Erlösungsvorstellungenm und ihre
psychologischen Aspekte, Zurique 1950. Ele
oficiou nos funerais da senhora Emma Jung e também falou no funeral de C. G.
Jung. Jung refere-se a uma carta do Dr. Schär sobre Resposta a Jó.
(2)
Simão, o teólogo, místico da Igreja oriental, por volta de 949-1022.
(3) “Jamais
farás com que os outros se tornem o Um, se antes tudo mesmo não te tornares Um”.
De Dorneo: “Philosophia meditativa”, tem Theatrum Chemicum, 1602, I, p. 472.
Cf. Psicologia e alquimia, 1952; OC, Vol. XII, § 358.
(4) “Quanto
estou dolorido por ti” – II Samuel 1.26. Epígrafe de Resposta a Jó.
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