Londres, 29 de fevereiro de 1952.
Dear Dr. Smythies,
Não me atrevo a
escrever uma carta ao editor do Journal of the S. P. R., como o senhor sugere
(2). Receio que meu inglês seja muito pobre, sem boa gramática e muito
coloquial. Entre filósofos muito letrados e ilustres a minha argumentação
simples não faria boa figura. Além disso, sei por experiência que os filósofos
não entendem minha linguagem inculta. Portanto, se me permite, prefiro escrever
uma carta ao senhor e deixá-lo à vontade para fazer dela o que achar mais
conveniente.
Quanto à sua hipótese,
eu já lhe disse que me agrada muito a sua ideia de um corpo perceptivo, isto é,
“sutil” (3). Seu ponto de vista parece-me bastante confirmado pelo fato
peculiar de que, por um lado, a consciência tem muito pouca informação direta
sobre o corpo a partir de dentro e que, por outro lado, o inconsciente (isto é,
sonhos e outros produtos do “inconsciente”) se refere muito raramente ao corpo
e, quando o faz, é sempre através de rodeios, ou seja, através de imagens
altamente “simbolizadas”. Por longo tempo considerei este fato como evidência
negativa da existência de um corpo sutil ou, ao menos, de uma lacuna estranha
entre a mente e o corpo. Seria de esperar ao menos que a psique, residente em
seu próprio corpo, tivesse informação imediata e completa sobre qualquer mudança
de condições dentro dele. Não sendo este o caso, há que haver alguma
explicação.
Vamos agora à sua
crítica ao conceito de espaço (4). Pensei muito sobre isso. Talvez o senhor
saiba que o átomo de hélio se caracteriza por 2x3 fatores espaciais e por 1
fator temporal. Não sei se existe algo neste paralelo ou não. De qualquer
forma, a suposição de um corpo perceptivo postula um espaço perceptivo
correspondente, que separa a mente do espaço físico, da mesma maneira que o
“corpo sutil” causa a lacuna entre a mente e o corpo físico. Assim chegamos
logicamente a dois espaços diferentes, mas que não podem ser totalmente
incomensuráveis, uma vez que existe – apenas da diferença – comunicação entre
eles. O senhor supõe que o fator que eles têm em comum é o tempo. Portanto
pressupõe-se que o tempo seja o mesmo física e perceptivamente. Mas os
fenômenos-y mostram claramente que
entre o tempo físico existe uma diferença. Eu ouso dizer que o fator tempo
prova ser igualmente “elástico” como o espaço, sob as condições da percepção
extrassensorial (5). Se este for o caso, estamos diante de dois sistemas
quadridimensionais numa contiguidade contingente. Perdoe-me, por favor, a
maneira tão tortuosa de colocar as
coisas. Isto mostra apenas a minha perplexidade.
O comportamento
nitidamente arbitrário do tempo e do espaço sob as condições da PES (percepção
extrassensorial) parece exigir tal postulado. Por outro lado, poderia alguém
perguntar se é possível continuar pensando em termos de espaço e tempo como até
agora, enquanto a física moderna começa a abandonar esses conceitos em favor de
um continuum espaço-tempo, em que o espaço já não é espaço e o tempo já não é
tempo. Em resumo, a pergunta é: deveríamos abandonar as categorias espaço-tempo
em geral, quando se trata da realidade psíquica? Poder-se=ia entender a psique
como intensidade inexpandida e não
como um corpo movendo-se no tempo. Poderíamos supor que a psique vai surgindo
aos poucos da menor extensidade até a infinita intensidade, ulrapassando, por
exemplo, a velocidade da luz e assim irrealizando o corpo. Isto explicaria a
“elasticidade” do espaço sob as condições da PES. Se não houver um corpo
movendo-se no espaço, também não poderá haver tempo, e isto poderia explicar a
“elasticidade” do tempo.
O senhor certamente objetará
a este paradoxo da “intensidade inexpandida” como sendo uma contradictio in adiecto. Concordo.
Energia é massa, e massa refere-se a expansão. De qualquer forma, um corpo com
velocidade superior à da luz desaparece da visão, e só restarão dúvidas sobre o
que aconteceria com um corpo desses. Certamente não haveria meios de afirmar
algo sobre seu paradeiro ou sobre sua existência. Seria impossível também fixar
o seu tempo.
Tudo isso é altamente
especulativo e até indefensavelmente aventureiro. Mas também os fenômenos-y são desconcertantes e provocam um salto extraordinariamente
alto do pensamento. Qualquer hipótese é justificável enquanto explica fatos
observáveis e é consistente em si. À luz desse ponto de vista, o cérebro seria
uma estação transformadora em que a tensão ou intensidade relativamente
infinitas da psique em si seriam transformadas em frequências ou “extensões”
perceptíveis. Inversamente, o desaparecimento da percepção introspectiva do
corpo se explica por uma gradual “psiquificação”, isto é, intensificação às
custas da extensão. Psique = máxima intensidade no menor espaço.
No meu ensaio sobre a
sincronicidade não me aventurei nesse tipo de especulação. Eu proponho um novo
(na verdade, bem antigo) princípio de explicação, isto é, a sincronicidade, que
é um termo novo para a já consagrada sumpaqeia
ou correspondentia
(6). Na verdade, eu me reporto a Leibniz, o último pensador medieval com um
critério holístico. Ele explicou o fenômeno por meio de quatro princípios:
espaço, tempo, causalidade e correspondência (“harmonia praestabilita”) (7). O
último princípio já foi abandonado há muito tempo (ainda que Schopenhauer o
tenha reassumido, disfarçado como causalidade). Eu penso que não há explicação causal para os fenômenos-y. Conceitos como transferência de pensamentos, telepatia e
clarividência nada significam. Como imaginar uma explicação causal para um caso
de precognição?
Na minha opinião, os
fenômenos-y são contingências além
da mera probabilidade, “coincidências significativas” (sinngemässe Koinzidensen) devido a uma condição psíquica especial,
isto é, uma certa disposição emocional chamava interesse, expectativa,
esperança, fé, etc., ou uma situação emocional objetiva como morte, doença, ou
outras condições “numinosas”. As emoções seguem um padrão instintivo, isto é,
um arquétipo. Nos experimentos da PES, por exemplo, temos a situação do milagre. Parece que o caráter coletivo
dos arquétipos se manifesta também em coincidências significativas, isto é,
como se o arquétipo (ou o inconsciente coletivo) não estivesse apenas dentro do
indivíduo, mas também fora dele, ou seja, em seu meio ambiente, como se emissor
e receptor estivessem no mesmo espaço psíquico ou no mesmo tempo (em casos de
precognição). Como se no mundo psíquico não há corpos movendo-se através do espaço,
também não há tempo. O mundo arquetípico é “eterno”, isto é, fora do tempo, e
está em toda parte, pois não existe espaço sob condições psíquicas, isto é,
arquetípicas. Onde prevalece um arquétipo, podemos esperar fenômenos
sincronísticos, isto é, correspondências
acausais que consistem num ordenamento paralelo dos fatos no tempo. O
ordenamento não é o efeito de uma causa. Ele simplesmente acontece como
consequência não é o efeito de uma causa. Ele simplesmente acontece como
consequência do fato de a causalidade ser mera verdade estatística. Proponho,
por isso, 4 princípios para a explicação da natureza (8):
Espaço
Causalidade Sincronicidade
Tempo
Ou levando em
consideração a física moderna:
Energia indestrutível
Conexão
constante dos Conexão
inconstante
Fenômenos
através do _______|________através da
contingência
Efeito
(causalidade) com identidade ou
sentido (sincronicidade)
Continumm
de espaço e tempo
A contingência é na
maioria das vezes sem sentido, mas os fenômenos-y provam que ela tem sentido às vezes.
Pode-se introduzir a
sincronicidade como suplemento necessário de uma causalidade apenas
estatística, o que é a maneira negativa de fazê-lo. Mas uma demonstração
positiva exige fatos, que não posso fornecer nesta carta. Estão no meu livro.
Espero ter-lhe dado ao menos uma ideia do que entendo por sincronicidade. Se o
senhor acha que isto é algo não muito diferente da harmonia praestabilita de Leibniz, não está longe da verdade. Mas,
enquanto se trata em Leibniz de um fator constante, na minha concepção isto é
um fator totalmente inconstante e dependente em grade parte da condição
psíquica e arquetípica.
Lamento estar atrasado
com minha resposta. Mas fui acometido de uma gripo e ainda sobre por causa do
tempo.
Yours sincerely,
C. G. Jung
(1) Dr.
John R. Smythies, psiquiatra, professor do Departamento de Medicina Psicológica
da Universidade de Edimburgo desde 1959. Diversas publicações sobre
parapsicologia teórica.
(2) Dr. Smythies havia pedido a Jung para
participar com um artigo no simpósio “On the Nature of Mind” a ser publicado em
Journal of the Society for Psychical
Research, 1952.
(3) Cf. Carta a Frei, de 17 de janeiro de 1949.
(4) Cf.
J. H. Smythies, Analysis of Perception,
Londres 1956.
(5) Sobre a elasticidade ou
relatividade psíquicas de espaço e tempo, cf. Jung-Pauli, Naturerklärung und Psyche, 1952; Sincronicidade. OC, vol. VIII/3, § 840. Cf. também
carta a Künkel, de 10 de julho de 1946, nota 7.
(6) Cf. carta a Whitmont, de 04 de março de 1950,
nota 3.
(7) Segundo Leibniz, a “harmonia praestabilita” é
uma coordenação significa, criada por Deus, de corpos e almas e um “sincronismo
absoluto dos acontecimentos psíquicos e físicos”. Naturerklärung und Psyche, 1952; OC, vol. VIII, § 927. Cf. carta a
Bender, de 06 de março de 1958.
(8) Os dois esquemas a seguir está em Sincronicidade. OC. Vol.
VIII/3, § 951 e 953.
JUNG,
C. G. Cartas: 1946-1955. Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 218-221.
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