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À senhorita Pastora Dorothee Hoch

 

Riehen-Basileia, 30 de abril de 1953.

 

Prezada senhorita!

Foi muita gentileza sua escrever-me outra vez, ainda que eu não tenha respondido sua carta de 05 de dezembro de 1952. Visto que meu estado de saúde vem deixando a desejar há mais tempo e visto que a senhorita não está em condições de seguir a minha linha de pensamento, fugiu-me o ânimo de responder-lhe mais uma vez. Trata-se simplesmente e apenas de uma questão que já os antigos cristãos haviam entendido, que sempre foi entendida na Idade Média e que toda a Índia já entendeu desde tempos imemoriais (1). O quanto a senhorita me entende mal conclui-se de sua frase de que “a psicanálise (!) quer levar a pessoa a descobrir o seu si-mesmo como a meta última”. Talvez a “psicanálise” pretenda algo parecido, mas eu não penso em semelhante futilidade, pois o si-mesmo é por definição uma grandeza transcendental com a qual se defronta o eu. É um completo mal-entendido (e o contrário daquilo que eu sempre acentuei) que o si-mesmo seja uma “concentração sobre o mim”. Isto é precisamente o que ele não é. Qualquer que seja o destino último do si-mesmo (e os místicos cristãos também têm algo a dizer aqui), ele significa em todos os casos e em primeiro lugar o fim do eu. A senhorita mesmo diz (o que v. Orelli (2) disse e eu sempre afirmei) que Cristo é o “si-mesmo de todos os si-mesmos” (3). Esta é a definição correta do si-mesmo e significa: assim como Cristo está relacionado com todos os indivíduos, todos os indivíduos estão relacionados com Cristo. Todo si-mesmo tem a qualidade de pertencer ao “si-mesmo de todos os si-mesmos”, e o si-mesmo de todos os si-mesmos consiste dos si-mesmos individuais. O conceito psicológico concorda plenamente com isto.

Nada tenho a objetar contra suas formulações teológicas, pois se quisesse criticá-las deveria antes conseguir conhecimentos teológicos bem maiores. A senhorita trata a psicologia com pouco caso e não percebe que a compreende tão mal. Meu empenho visava dar-lhe uma concepção mais correta de minha psicologia. Mas isto é impossível, conforme devo admitir para tristeza minha. Realmente não é fácil entrar em diálogo com os teólogos: eles não escutam o outro (que está errado de antemão), mas apenas a si mesmos (e chamam isto de palavra de Deus). Isto talvez provenha do fato de terem de pregar de cima do púlpito, a que ninguém tem direito de responder. Esta atitude, que encontrei quase em toda parte, afugentou-me da Igreja, bem como a muitos outros. Gosto de conversar com teólogos protestantes e católicos, que entendem e querem entender o que eu falo. Mas o diálogo chega ao fim quando se esbarra contra a parede da Igreja e da Confissão, pois ali começa o autoritarismo e o instinto de poder que não admite nada fora dele próprio. Por isso o diabo ri diante das 400 denominações protestantes que se hostilizam e diante do grande cisma reformador. As Igrejas cristãs não conseguem entender-se! Que escândalo infernal! A senhorita não encorajou a minha tentativa de construir pontes. Não desejo importuná-la mais com os meus paradoxos, devo antes pedir-lhe perdão por aquilo que lhe parece inevitavelmente como sendo agressividade injusta de minha parte. Não gostaria de ofendê-la ou magoá-la inutilmente, por isso quero repetir que nada tenho contra as suas formulações teológicas e que as considero válidas dentro de seu gênero. Minha esperança era proporcionar-lhe uma visão mais razoável e menos deturpada de minha psicologia. Evidentemente sou péssimo advogado em causa própria e, por isso, gostaria de despedir-me da senhorita com muitas desculpas.

Com elevada consideração, C. G. Jung.

 

(1)Jung refere-se ao mal-entendido na carta da destinatária (05.12.1952) de que era “um sofisma crer que o si-mesmo humano pudesse alguma coincidir com o si-mesmo divino, que tem sozinho a vida em si mesmo”.

(2)Cf. carta a v. Orelli, de 07 de fevereiro de 1950, nota 1.

(3)Sobre a relação de Cristo e o si-mesmo, cf. o capítulo “Cristo, símbolo do si-mesmo”, em Aion (OC, vol. IX/2) e o capítulo “Cristo como arquétipo”, em OC, vol. XI.

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