Ao Pastor W. Niederer
Zurique-Wipkingen, 01 de outubro de 1953.
Prezado Pastor!
Responderei os pontos que me coloca da
melhor forma que posso fazê-lo por escrito (1).
1.Meu interesse estava, em primeiro lugar,
em entender eu mesmo o sentido da mensagem cristã; em segundo lugar, transmitir
este entendimento aos meus pacientes que sentiam uma necessidade religiosa; e,
em terceiro lugar, salvar o sentido dos símbolos cristãos em geral.
2.Eu não faço nada com Deus. Como poderia?
Critico apenas nossas concepções de Deus. Eu não sei o que Deus é em si. Em
minha experiência só há fenômenos psíquicos que, em última análise, são de
origem desconhecida, pois a psique em si é irremediavelmente inconsciente.
Todos os meus críticos ignoram os limites epistemológicos que eu respeito
claramente. Assim como tudo o que percebemos é fenômeno psíquico e, portanto,
secundário, o mesmo acontece com toda a experiência interior. Nós deveríamos
ser realmente modestos e não imaginar que podemos dizer qualquer coisa de Deus
em sim. Defrontamo-nos na verdade com enigmas terríveis.
Devemos estar conscientes de que existe um
inconsciente. Eu não ouso formular o que o teólogo faz, mas o que eu faço é
tentar tornar as pessoas suficientemente conscientes para que saibam onde podem
querer e onde se confrontam com a força um não-eu. Na medida em que posso
observar os efeitos desse não-eu, também é possível para mim fazer afirmações
sobre ele. Não tenho nenhum meio cognitivo real (apenas decisões arbitrárias)
que me permitem distinguir o não-eu em si incognoscível daquilo que os homens
vêm chamando de Deus (ou deuses, etc.) desde tempos imemoriais. Assim, por
exemplo, parece-me que o supremo arquétipo do si-mesmo tem um simbolismo
idêntico ao da imagem tradicional de Deus. Para mim é incompreensível como se
poderia entender tudo isso sem o conhecimento da psicologia do inconsciente ou
sem o autoconhecimento. Na psicologia só se entende aquilo que se experimentou
ou vivenciou.
O arquétipo é a última coisa que posso
entender do mundo interior. Com isso não se nega nada do que ainda poderia
estar ali dentro.
3.Quando se admite que Deus atinge o
profundo da psique, que a torna efetiva, ou seja, ela mesma, então os
arquétipos são por assim dizer órgãos (instrumentos) de Deus. O si-mesmo
“funciona” como a imagem de Cristo. É o “Christus in nobis” teológico. Assim já
pensaram os antigos, inclusive Paulo, e não só eu. Eu me coloco claramente no
plano empírico e falo psicologicamente, ao passo que o teólogo fala uma
linguagem teológico-analógica ou mitológica.
Certamente a afirmação teológica do éon
cristão não corresponde em todos os pontos ao empirismo psicológico, por
exemplo em relação a Deus como Summum Bonum ou a Cristo como figura de luz
pneumática e unilateral. Mas tudo o que vive se transforma, evolui inclusive;
por isso o cristianismo já não é aquilo que era há 1.000 anos, ou há 1.900
anos. Pode diferenciar-se ainda mais, isto é, continuar vivendo, mas para isso
precisa ser interpretado de forma nova a cada éon. Se isto não aconteceu (isto
acontece até mesmo na Igreja Católica), sufoca-se no tradicionalismo. O
fundamento, porém, continua eternamente o mesmo, isto é, os fatos básicos da
psique.
4.Aqui só posso dizer: O sancta
simplicitas! Sei que sou parte da fogueira ad maiorem Dei gloriam. Eu me
considero uma pessoa cristã, mas isto não adiantou muito para Savanarola (2) e
para Serveto(3);nem o próprio Cristo escapou desse destino. Ai daquele por quem
vier o escândalo (4). O que dizer desse clero medíocre em relação ao seguimento
de Cristo? Onde estão crucificados? Eles estão salvos sem aquele sofrimento, e
Cristo pode continuar cuidando de tudo.
Recomendações à sua esposa e saudações
cordiais,
C. G. Jung
(1)O pastor W. Niederer havia pedido a
Jung que se pronunciasse sobre os seguintes pontos: 1. O esforço de Jung para
tornar compreensível ao homem moderno a mensagem bíblica; 2. A afirmação dos
críticos de que Jung “despersonalizava” Deus. A relação entre grau de
consciência e pensamento religioso; 3. Se era possível considerar o efeito dos
arquétipos como força de Deus; 4. A acusação frequente de que Jung era um
“psicólogo não cristão da religião”.
(2)Girolamo Savanarola (1452-1498), monge
dominicano da Itália, autor de uma tentativa de reforma eclesiástico-política.
Queimado na fogueira em Florença como herege e cismático.
(3)Miguel Serveto (1511-1553), médico e teólogo
espanhol que atacou a doutrina da Trindade e professou uma espécie de neoplatonismo
panteísta. Foi levado à fogueira por instigação de João Calvino, em Genebra. Oralmente
Jung manifestou sua decepção pelo monumento modesto que os genebrinos erigiram em
sua cidade como reparação a este homem religioso.
(4)Mateus 18:7.
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