Avançar para o conteúdo principal

Ao Prof. Oskar Schrenk

Ao Prof. Oskar Schrenk

Paris, 18 de novembro de 1953.

 

Prezado Professor,

Muito obrigado por sua amável carta que recebi na primavera deste ano. Naquela época eu estava doente e não pude cuidar de minha correspondência, de modo que sua carta ficou esperando. No entanto, não gostaria de perder a oportunidade de voltar a ela, porque contém coisas importantes. O “professor e sua filha” (1) é uma imagem moderna bem conhecida para o arquétipo do velho e sua filha na gnose: Buthos e Sofia (2). O senhor deve lembrar-se da interessante história de amor de Sofia em Adversus Haereses de Irineu (3). Quando se lê sobre materiais arquetípicos, é de todo inevitável que sejam atingidas as imagens primitivas no nosso próprio inconsciente. Quando a gente lê livros que nos afetam pessoalmente, existe sempre o perigo da imitação, e há muitas pessoas que acham que assim está tudo resolvido. Mas se tivermos uma atitude crítica e honesta para conosco mesmos, percebe-se logo o engano. Tudo quer ser vivido, positiva ou negativamente.

Quanto ao sonho de seu colega X (4), descobri desde então que nos midraxes o símbolo da águia é atribuído ao profeta Elias que, enquanto tal, sobrevoa a terra e espiona os segredos do coração humano. Sei de experiência que estas tradições antigas foram totalmente esquecidas pelos judeus, mas que, à menor provocação, podem reviver e causar às vezes sentimentos muito intensos de ansiedade.

Quanto às experiências telepáticas, etc., gostaria de indicar-lhe um pequeno escrito, publicado por mim e pelo físico Prof. W. Pauli, cujo título é Naturerklärung und Psyche, Rascher & Co., Zurique. Lá encontrará as opiniões e os resultados mais modernos sobre este assunto.

Sua observação sobre a casa paroquial suábia faz sentido, pois minha avó por parte de mãe foi uma Faber (germinização de Favre du Faure) e, segundo penso, era de Tuttlingen. Era casada com meu avô, o antístite Samuel Preiswerk de Basileia (5). Tive sempre a desconfiança de que meu bem-aventurado avô colocou um ovo muito estranho em minha mistura.

Com elevada consideração,

C. G. Jung

(1)Cf. carta a Schrenk, de 08 de dezembro de 1952, nota 1.

Nota referenciada: “Após a leitura de Resposta a Jó, o professor Schrenk escreveu a Jung e lhe enviou dois sonhos dele mesmo e um de um colega francês de 25 anos de idade, que também havia lido o livro: os três sonhos seriam atribuídos a esta leitura. Nos dois primeiros parágrafos de sua carta, Jung refere-se ao segundo sonho de Schrenk, no qual ele encontra o seu muito estimado professor G. Este lhe diz: “Quero mostrar-lhe hoje o banho de sol de minha filha”. O sonhador esperava ver o corpo nu de uma mulher atrás de um biombo.

(2)Segundo a gnose de Valentino (no Egito por volta do ano 160), o perfeito Pai primitivo Bythos (=abismo, profundeza) gerou com sua filha Sofia o salvador Cristo.

(3)Irineu, bispo de Lião, por volta de 130-202, Padre da Igreja. Seus escritos contra os egípcios Adversus Haereses libri qinque são fonte importante para o conhecimento da doutrina gnóstica.

(4)Cf. carta a Schrenk, de 08 de dezembro de 1952.

(5)Cf. Memórias, p. 345.

Imagem: Jó, de William Blacke

Comentários

Mensagens populares deste blogue

To Dr. Edward A. Bennet

  To Dr. Edward A. Bennet, (1) Londres, 21 de novembro de 1953.   My dear Bennet, Muito obrigado pelo gentil envio do livro de Jones sobre Freud. O incidente à página 348 é correto, mas as circunstâncias em que ocorreu estão desvirtuadas (2). Trata-se de uma discussão sobre Amenófis IV: o fato de ele ter raspado dos monumentos o nome de seu pai e colocado o seu próprio; segundo modelo consagrado, isto se explica como um complexo negativo de pai e, devido a ele, tudo o que Amenófis criou – sua arte, religião e poesia – nada mais foi do que resistência contra o pai. Não havia notícias de que outros faraós tivessem feito o mesmo. Mas esta maneira desfavorável de julgar Amenófis IV me irritou e eu me expressei de maneira bastante vigorosa. Esta foi a causa imediata do desmaio de Freud. Ninguém nunca me perguntou como as coisas realmente aconteceram; em vez disso faz-se apenas uma apresentação unilateral e deformada de minha relação com ele. Percebo, com grande interesse, que a Roya

Aniela Jaffé (Zurique)

Carta à Aniela Jaffé (Zurique) “Bollingen,  12 de abril de 1949. Prezada Aniela, (...) Sua carta chegou num período de reflexões difíceis. Infelizmente nada lhe posso falar a respeito. Seria demais. Também eu ainda não cheguei ao final do caminho do sofrimento. Trata-se de compreensões difíceis e penosas (1). Após longo vagar no escuro, surgiram luzes mais claras, mas não sei o que significam. Seja como for, sei por que e para que preciso da solidão de Bollingen. É mais necessária do que nunca. (...)            Eu a parabenizo pela conclusão de “Séraphita” (2). Ainda que não tivesse aproveitado em nada a Balzac desviar-se do si-mesmo, gostaríamos de poder fazê-lo também. Sei que haveríamos que pagar mais caro por isso. Gostaríamos de ter um Javé Sabaoth como kurioz twn daimonwn (3). Compreendo sempre mais porque quase morri e vejo-me forçado a desejar que assim tivesse sido. O cálice é amargo. Saudações cordiais, C. G.” (1)Jung trabalhava na época no livro Aion

To Dr. Michael Fordham (1)

Londres, 18 de junho de 1954.   Dear Fordham, Sua carta traz más notícias; senti muito que não tenha conseguido o posto no Instituto de Psiquiatria (2), ainda que seja um pequeno consolo para o senhor que tenham escolhido ao menos um de seus discípulos, o Dr. Hobson (3). Depois de tudo, o senhor se aproxima da idade em que a gente deve familiarizar-se com a dolorosa experiência de ser superado. O tempo passa e inexoravelmente somos deixados para trás, às vezes mais e às vezes menos; e temos de reconhecer que há coisas além de nosso alcance que não deveríamos lamentar, pois esta lamentação é um remanescente de uma ambição por demais jovem. Nossa libido continuará certamente querendo agarrar as estrelas, se o destino não tornasse claro, além de qualquer dúvida razoável, que devemos procurar a perfeição dentro e não fora... infelizmente! Sabemos que há muito a melhorar no interior da pessoa, de modo que devemos agradecer à adversidade quando ela nos ajuda a reunir a energia livr