To Dr. John W. Perry
San Francisco/EUA, 08 de fevereiro de
1954.
Dear Perry,
Lamento que o senhor devesse esperar tanto
por minha resposta à sua pergunta (1). Aconteceram várias coisas neste
meio-tempo, e também minha saúde não se comportou bem. Tentarei responder à sua
pergunta do modo mais simples possível; é um problema difícil, como o senhor
mesmo deve ter percebido.
Em primeiro lugar, a regressão que ocorre
no processo de renascimento ou integração é em si um fenômeno normal, podendo
ser observado também em pessoas que não sofrem de nenhuma psicopatia. No caso
de uma constituição esquizoide, observa-se quase o mesmo, apenas com a
diferença de que há uma tendência marcante do paciente ficar preso ao material
arquetípico. Neste caso, repete-se sempre de novo o processo de renascimento.
Esta é a razão por que a esquizofrenia clássica desenvolve condições
estereotipadas. Até certo ponto, a experiência é a mesma com indivíduos
neuróticos. Isto é assim porque o material arquetípico tem uma estranha
influência fascinante que tenta assimilar a pessoa por inteiro. Ela procura
identificar-se com alguma das imagens arquetípicas que são características do
processo do renascimento. É por isso que os casos esquizofrênicos apresentam
quase sempre um comportamento de certo modo bem infantil. Pode-se observar
quase o mesmo em pacientes neuróticos; desenvolvem um comportamento infantil
por conta da identidade com a criança divina. Em todos estes casos a
dificuldade real está em libertar os pacientes da fascinação (através do
material arquetípico). Os casos esquizoides bem como os casos neuróticos
repetem muitas vezes sua história pessoal da infância. Isto é um sinal
favorável na medida em que é uma tentativa de voltar a crescer no mundo, como
eles já o fizeram antes, ou seja, em sua infância. (...)
Via de regra não é preciso levar os
pacientes a que revivam suas reminiscências infantis; geralmente eles o fazem
por si mesmos, pois é um mecanismo inevitável e, como eu disse, uma tentativa
teleológica de crescer novamente. Se observar apenas o material que os
pacientes produzem, verá que eles entrarão forçosamente em suas reminiscências,
costumes e maneira infantis e que projetarão especialmente as imagens dos pais.
Se houver uma transferência, o senhor ficará envolvido e integrado na atmosfera
familiar do paciente. A insistência dos freudianos em fazer que as pessoas
revivam o seu passado mostra simplesmente que na análise freudiana o paciente
não chega naturalmente a reviver o passado, e isso porque tem resistência
contra o analista. Quando deixamos que o inconsciente siga o seu caminho
natural, então podemos estar certos de que virá à tona tudo o que o paciente
precisa saber; também podemos estar certos de que tudo o que tiramos do
paciente por insistência em bases teóricas não será integrado na personalidade
do paciente, ao menos não como valor positivo, mas no máximo como resistência
duradoura. Nunca lhe ocorreu que minha análise pouco se fala de “resistência” e
que este termo é o mais frequente na análise freudiana?
Quando se trata de pacientes esquizoides,
a dificuldade de libertá-los do domínio do inconsciente é obviamente bem maior
do que nos casos de neuroses comuns. Muitas vezes não conseguem encontrar seu
caminho de volta do mundo arquetípico e que conduz para o mundo infantil
correspondente, onde haveria uma chance de libertação. Não é sem razão que
Cristo insiste em “tornar-se como crianças”, o que significa uma resolução
consciente de aceitar a atitude da criança, na medida em que esta atitude é
exigida pelas circunstâncias. Como se trata sempre do problema de aceitar a sombra,
é preciso a simplicidade de uma criança para submeter-se a esta tarefa
aparentemente impossível. Portanto, quando o senhor perceber que o processo de
renascimento mostra uma tendência de repetição, precisa saber que a fascinação
pelo material arquetípico ainda deve ser superada, talvez porque sua ajuda foi
insuficiente ou porque a atitude do paciente provocou resistência.
Mas esta questão etiológica significa
pouco. O senhor deve simplesmente tentar de novo transformar a fascinação
arquetípica numa simplicidade parecida com a da criança. Há evidentemente casos
em que nossa ajuda é insuficiente ou chega tarde demais, mas isto acontece em
todos os ramos da medicina. Eu procuro sempre seguir o caminho da natureza e
evito o máximo aplicar pontos de vista teóricos; jamais lamentei este meu
princípio.
Anexo um exemplar encantador de um médico
americano, especialmente iluminado, para sua distração ou como uma espécie de
consolo quando não encontrar a necessária compreensão de seus contemporâneos.
Faço votos de que esteja bem de saúde.
Yours cordially, C. G. Jung.
P.S. Acho que nós subestimamos na Europa a dificuldade que os senhores têm na América de comunicar aos ouvintes alguma coisa que pressuponha certa formação humanista geral. Temo que o sistema educacional dos senhores produza a mesma unilateralidade tecnológica e científica e o mesmo idealismo de bem-estar social como na Rússia. A maioria dos seus psicólogos, ao que me parece, ainda estão no século XVIII, pois acreditam que a psique humana é tabula rasa (2) no nascimento, ao passo que todos os animais algo diferenciados nascem com instintos específicos. A psique humana parece ser menos (diferenciada) do que a de um pássaro ou de uma abelha.
(1)Dr. Joh Weir Perry, psiquiatra e
psicólogo analítico, havia perguntado a Jung sobre a importância de uma
regressão para a infância e de uma identificação com o arquétipo da criança
durante um tratamento analítico ou psicoterapêutico. Dr. Perry via uma conexão
entre o processo de individuação e o arquétipo do renascimento. Cf. o livro
dele The Self in the Psychotic Process,
its Symbolization in Schizophrenia, 1953.
(2)Tabula rasa significa literalmente:
tabuleta apagada (era uma tabuleta de cera para nela se escrever, após a
escrita era apagada). Jung rejeitava a ideia de que a criança nascesse com uma
“psique vazia”. Mas a criança viria ao mundo com um cérebro diferenciado,
predeterminado pela hereditariedade e por isso também individualizado.
Sobretudo os fatores do inconsciente coletivo, denominados arquétipos, não são
conquistas da consciência, mas dominantes ou padrões preexistentes. Cf. Von den Wurzeln des Bewusstseins,
Zurique, 1954, p. 77; CC, Vol. IX/1, § 136.
Comentários
Enviar um comentário