To Prof. G. A. van den Bergh von Eysinga
(1)
Bloemendaal/Holanda, 13 de fevereiro de
1954.
Dear Sir,
Neste meio-tempo, alguém ajudou-me num
cuidadoso resumo de sua recensão (2). Parece-me que há certo mal-entendido de
minhas ideias básicas.
Antes de mais nada, não sou filósofo e
meus conceitos não são filosóficos e abstratos, mas empíricos ou biológicos. O
conceito em geral mal compreendido é o de arquétipo, que cobre certos fatos
biológicos, mas que não é uma ideia hipostasiada. O “arquétipo” é praticamente
sinônimo do conceito biológico de “padrão comportamental” (behaviour pattern).
Mas como este designa principalmente fenômenos externos, escolhi o termo
“arquétipo” para o “padrão psíquico” (psychic pattern). Não sabemos se o
pássaro tecelão contempla uma imagem interna ao seguir um modelo imemorial e
hereditário na construção de seu ninho; mas, pelo que sabemos da experiência,
nenhum pássaro tecelão inventou seu ninho. É como se a imagem da construção do
ninho tivesse nascido com o pássaro.
Como nenhum animal nasce sem os seus
padrões instintivos, não existe razão para supormos que o ser humano tenha
nascido sem suas formas específicas de reação fisiológicas e psicológicas. No
mundo inteiro os animais da mesma espécie apresentam os mesmos fenômenos
instintivos, assim o ser humano apresenta as mesmas estruturas arquetípicas,
onde quer que ele viva. Não há necessidade de ensinar ao animal procedimentos
instintivos; também o ser humano possui suas formas psíquicas básicas, que ele
repete espontaneamente, sem tê-las aprendido nunca. Na medida em que possui a
consciência e a capacidade da introspecção, também recebe a possibilidade de
perceber suas estruturas instintivas na forma de imagens arquetípicas. Como é
de se esperar, estas representações são praticamente universais (cf., por
exemplo, a identidade notável das estruturas xamanistas). Também pode acontecer
que surjam de novo e espontaneamente tradições na psique da pessoa, que haviam
sido totalmente esquecidas. Este fato atesta a autonomia dos arquétipos.
O “patter of behaviour” mostra também sua autonomia no fato de se impor e atuar quando as circunstâncias
gerais o permitem. Ninguém jamais pensaria que a estrutura biológica fosse uma
suposição filosófica, no sentido da ideia de Platão ou de uma hipóstase
gnóstica. O mesmo vale para o arquétipo. Sua autonomia é um fato observável e
não uma hipóstase filosófica. Sou médico e exerço a psiquiatria, tendo pois
boas oportunidades de observar fenômenos psíquicos que a filosofia não conhece,
ainda que o livro Automatisme Psychologique, de Pierre Janet, já tenha aparecido
há mais de 70 anos.
Sua crítica à minha liberdade poética: a
noite que circunda a “mulier amicta sole” (3), é justificada uma vez que o
texto não menciona a noite. Mas a imagem não é tão despropositada, pois fala-se
do dragão que varreu com sua cauda uma terça parte das estrelas do céu (4). O
meu mitologema faz alusão à Leto, às mães dos heróis em geral e às deusas-mães
matriarcais, com todas as suas associações ctônicas e noturnas. Mas isto tem
pouca importância.
Outro ponto: se Javé não tivesse sido
influenciado por Satanás – o que o senhor parece admitir – então ele teria
torturado Jó contra sua própria e melhor convicção, o que teria piorado ainda
mais o seu caso. A amoralidade de Javé nada tem a ver
com a diferenciação moral dos crentes. Ela persiste ainda hoje e é reconhecida
mesmo por manuais de teologia. Mas não fazemos caso dessas emoções
descontroladas e de sua injustiça, e não nos conscientizamos das consequências
que já foram indicadas há muito tempo pelos midraxes (5) (por exemplo a admoestação
ao Senhor de que ele se lembre de suas melhores qualidades; o toque do chofar
para recordá-lo da trama assassina contra Isaac (6), etc.).
É
lamentável que o senhor não tenha lido minhas notas introdutórias. Teria
descoberto ali meu ponto de vista empírico, sem o qual – eu lhe garanto – meu
pequeno livro não tem sentido algum. Do ponto de vista filosófico, sem
considerar sua premissa psicológica, é pura imbecilidade; do ponto de vista
teológico é nada mais do que crassa blasfêmia; e do ponto de vista do senso
comum racionalista é um monte de fantasmagorias ilógicas e cretinas. Mas a
psicologia tem suas próprias proposições e suas próprias hipóteses de trabalho,
baseadas na observação dos fatos, isto é, (em nosso caso) a reprodução
espontânea de estruturas arquetípicas que aparecem nos sonhos e também nas
psicoses. Não se conhecendo estes fatos, fica difícil entender o que significa
“realidade psíquica” e “autonomia psíquica”.
Concordo
com o senhor que minhas afirmações (em Resposta a Jó) são chocantes, mas não
mais, e até bem menos, do que as manifestações da natureza demoníaca de Javé no
Antigo Testamento. Os midraxes sabem disso, mas a Igreja cristã precisou
inventar este espantoso silogismo da privatio boni para anular a ambivalência
original do Deus judeu. Enquanto a Igreja católica tem ao mesmo uma espécie de
setentia communis (7) para explicar a transmutação de Javé, que “ad instar
rhinocerotis” (8) pôs em desordem o mundo do Antigo Testamento, no Deus de amor
do Novo Testamento, o protestantismo mantém firme a identidade dos dois Deuses
e não admite uma transformação do único Deus. Isto é um escândalo. Mas os
teólogos sofrem do fato de que quando dizem “Deus”, então este Deus é. Porém
quando digo “Deus”, sei que expressei minha imagem de tal ser, e honestamente
não tenho certeza se ele é igual à minha imagem ou não, mesmo que eu acredite
na existência de Deus. Quando Martin Buber fala de Deus, ele não nos diz de
qual Deus, mas presume que seu Deus seja o único. Minha imagem de Deus
corresponde a um padrão arquetípico autônomo. Por isso posso experimentar Deus
como se ele fosse um objeto, mas não preciso admitir que esta seja a imagem
única. Sei que estou lidando com um “antropomorfismo simbólico”, como diz Kant,
que envolve a “linguagem” (e expressão mímica em geral), mas não o objeto em
si” (9). Criticar o antropomorfismo intencional ou não intencional não é
blasfêmia nem superstição, mas está perfeitamente dentro do âmbito da crítica
psicológica.
Yours
faithfully, C. G. Jung.
(1)G.
A. van den Bergh van Eysinga, 1874-1957, professor de teologia. Gustaaf Adolf van den Bergh van Eysinga
(2)Depreende-se
da carta de Jung que se trata de uma recensão crítica de Resposta a Jó.
(3)Apocalipse
12.1: “Uma mulher vestida de sol”, Cf. Resposta a Jó, Vol. 11/4, § 711s.
(4)Cf.
Apocalipse 12.3: “...um grande dragão cor de fogo. (...) A cauda varreu do céu
a terça parte das estrelas...”.
(5)Trata-se
de ditos rabínicos e talmúdicos sobre o lado escuro de Javé, que o Prof. Zwi
Werblowsky, Jerusalém, reunir para Jung e são citados em Aion, Vol. 9/2, § 105s.
(6)O
chofar é um instrumento de sopro, feito de chifre de carneiro, que é usado
ainda hoje no culto judeu, por exemplo no anúncio do ano novo e como memória da
obediência de Abraão a Deus. Segundo uma legenda do Talmud, Abraão acusou a
Deus de infringir sua palavra quando mandou sacrificar Isaac: “É de Isaac que
sairá tua posteridade”. E ele disse a Deus: “Se os meus descendentes um dia
procederem contra ti e tu quiseres castiga-los por causa disso, lembra-te de
que também tu não és inocente, e perdoa-lhes”. Deus escutou as palavras de
Abraão, mostrou-lhe o carneiro e disse: “E se teus descendentes um dia pecarem
e eu me sentar no dia do ano novo para julgá-los, então devem tocar o chifre de
carneiro, para que eu me lembre de tuas palavras e faça prevalecer a
misericórdia sobre a justiça”. Fromer-Schnitzer, Legende naus dem Talmud,
Berlim 1922. Vol. 11, § 406, nota 26.
(7)Na
sententia communis (por exemplo a explicação do mal como “privatio boni”)
trata-se de uma afirmação teológica, que é crida em geral, mas que não é dogma.
(8)
“A modo de um rinoceronte”. O jesuíta francês Nicolau Caussino (primeira metado
do século XVII), confessor de Luís XIII, menciona o rinoceronte como símbolo
perfeito de Deus do Antigo Testamento, pois colocou o mundo em desordem, como
um rinoceronte enfurecido. Entretanto, vencido afinal pelo amor de uma virgem
pura, converteu-se no Deus de amor, no seio dessa mesma virgem. N. Caussiono,
De Symbolica Aegyptiorum Sapientia, Paris 1618-1631. Cf. Vol. 11, §408.
(9)
Cf. I. Kant, Prolegomena III, § 57.
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