Avançar para o conteúdo principal

A uma jovem da Grécia


A uma jovem da Grécia

Atenas, 14 de outubro de 1954.

 

Dear Miss N.,

Quanto à sua pergunta (1), se faz diferença a seus sonhos ter lido algo semelhante a eles, devo dizer que sonhos do tipo que me enviou podem ocorrer se leu (meus livros) ou não. É natural que os sonhos peguem material de qualquer fonte disponível, seja de livros ou de outras experiências. Há pessoas que leem meus livros e nunca têm sonhos referentes a eles. Mas é verdade que, tendo compreendido o que leu, a pessoa adquire uma atitude mental ou concepções problemáticas que não tinha antes e que influenciam naturalmente seus sonhos.

Não acredito que seu sonho (2) tenha sido influenciado pelo que leu. Não costumo interpretar sonhos de pessoas que não conheço pessoalmente; a gente se engana facilmente. Faço uma exceção no seu caso porque percebo que a interpretação do sonho é muito importante para a senhorita. No começo há certo medo de uma situação catastrófica – a tempestade e a escuridão. A repentina descoberta do alto-relevo é algo como uma revelação, um desnudamento do pano de fundo compensador de sua psicologia consciente, que tem inclinações masculinas (animus) (3). É o mistério eleusino de Deméter e de sua filha Perséfone (4). O elemento masculino rende homenagem a esta figura materna. Parece óbvio que o sonho quer chamar sua atenção para este grande mitologema, tão importante para uma psicologia feminina. Isto é especialmente importante no seu caso porque a senhora está muito ligada à mãe e, ao que parece, parcialmente identificada com ela, sendo sua filha única. Também está afastada de seu pai, do qual não recebeu o que é devido a uma filha (5). Por isso a senhorita desenvolveu uma espécie de substituto para a influência espiritual que não brotou de seu pai como devia. Isto é uma grande obstrução, atuando tanto sobre o lado masculino quanto feminino de sua personalidade. Seria inteligente, pois, seguir a sugestão do senhor e meditar sobre os aspectos do mito de Deméter e Perséfone.

A Grécia teve seu culto eleusino porque sofreu de uma condição psicológica muito semelhante: as mulheres sob a influência demasiada de suas mães e espiritualmente privadas de seus pais; os homens também por demais influenciados pela mãe, por causa da emocionalidade incontrolada dos pais e vitimados pelo apetite emocional de suas mães, daí a homossexualidade tão difundida na população sobretudo masculina. No tempo de Péricles houve até mesmo uma epidemia de suicídios entre mulheres jovens que se sentiam desprezadas por homens voltados a atividades homossexuais. Procure descobrir o que Deméter tem a lhe dizer. A senhorita sente-se bem mais atraída pelo mistério ctônico, representado por Deméter do que pelas tendências especiais e paternais do cristianismo, do qual a senhorita aparentemente se separou. É esta atitude crítica que deve ser considerada como causa imediata desse sonho com sua atmosfera claramente antiga.

Isto é quase tudo o que poderia dizer com segurança sobre o seu sonho. Se lhe der toda a atenção, provavelmente terá outros sonhos que vão esclarecer os ulteriores passos de seu caminho.

Sincerely yours, C. G. Jung.

 

(1)A destinatária havia lido a maioria dos livros de Jung e perguntava se esta leitura havia influenciado os seus sonhos.

(2)O sonho: Numa escuridão repentina e no começo de uma tempestade, a sonhadora procura refúgio numa casa. Lá encontra um alto-relevo de duas figuras femininas com longas vestes gregas. Reconhece uma delas como sendo Deméter. No seguimento do sonho, dois jovens com vestes longas inclinam-se diante da deusa e lhe trazem oferendas.

(3)A destinatária havia escrito sobre seu grande apreço pelos valores intelectuais e sobre uma diferenciação conscientemente cultivada de seus traços masculinos.

(4)De acordo com o hino a Deméter, de Homero, HAdes, deus dos ínferos, rouba a filha de Deméter, Perséfone, a Core (a menina). Com muita raiva, a mãe e deusa da terra. Deméter amaldiçoa a terra com a esterilidade, até que Zeus intervém e consegue que Perséfone passe dois terços do ano com sua mãe e um terço com Hades, como sua esposa. Os mistérios eleusinos são celebrados em honra da deusa Deméter e de sua filha. Cf. K. Kerény "Die Kore in Eleusis" e "Die Eleusinische Paradoxie", em Jung-Kerényi, Einführung in das Wesen der Mythologie, Zurique, 1951.

(5)Ao que parece, o pai da destinatária era altamente introvertido e indiferente com relação à filha.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Aniela Jaffé (Zurique)

Carta à Aniela Jaffé (Zurique) “Bollingen,  12 de abril de 1949. Prezada Aniela, (...) Sua carta chegou num período de reflexões difíceis. Infelizmente nada lhe posso falar a respeito. Seria demais. Também eu ainda não cheguei ao final do caminho do sofrimento. Trata-se de compreensões difíceis e penosas (1). Após longo vagar no escuro, surgiram luzes mais claras, mas não sei o que significam. Seja como for, sei por que e para que preciso da solidão de Bollingen. É mais necessária do que nunca. (...)            Eu a parabenizo pela conclusão de “Séraphita” (2). Ainda que não tivesse aproveitado em nada a Balzac desviar-se do si-mesmo, gostaríamos de poder fazê-lo também. Sei que haveríamos que pagar mais caro por isso. Gostaríamos de ter um Javé Sabaoth como kurioz twn daimonwn (3). Compreendo sempre mais porque quase morri e vejo-me forçado a desejar que assim tivesse sido. O cálice é amargo. Saudações cordiai...

To Dr. Edward A. Bennet

  To Dr. Edward A. Bennet, (1) Londres, 21 de novembro de 1953.   My dear Bennet, Muito obrigado pelo gentil envio do livro de Jones sobre Freud. O incidente à página 348 é correto, mas as circunstâncias em que ocorreu estão desvirtuadas (2). Trata-se de uma discussão sobre Amenófis IV: o fato de ele ter raspado dos monumentos o nome de seu pai e colocado o seu próprio; segundo modelo consagrado, isto se explica como um complexo negativo de pai e, devido a ele, tudo o que Amenófis criou – sua arte, religião e poesia – nada mais foi do que resistência contra o pai. Não havia notícias de que outros faraós tivessem feito o mesmo. Mas esta maneira desfavorável de julgar Amenófis IV me irritou e eu me expressei de maneira bastante vigorosa. Esta foi a causa imediata do desmaio de Freud. Ninguém nunca me perguntou como as coisas realmente aconteceram; em vez disso faz-se apenas uma apresentação unilateral e deformada de minha relação com ele. Percebo, com grande interesse, q...

To Dr. Michael Fordham (1)

Londres, 18 de junho de 1954.   Dear Fordham, Sua carta traz más notícias; senti muito que não tenha conseguido o posto no Instituto de Psiquiatria (2), ainda que seja um pequeno consolo para o senhor que tenham escolhido ao menos um de seus discípulos, o Dr. Hobson (3). Depois de tudo, o senhor se aproxima da idade em que a gente deve familiarizar-se com a dolorosa experiência de ser superado. O tempo passa e inexoravelmente somos deixados para trás, às vezes mais e às vezes menos; e temos de reconhecer que há coisas além de nosso alcance que não deveríamos lamentar, pois esta lamentação é um remanescente de uma ambição por demais jovem. Nossa libido continuará certamente querendo agarrar as estrelas, se o destino não tornasse claro, além de qualquer dúvida razoável, que devemos procurar a perfeição dentro e não fora... infelizmente! Sabemos que há muito a melhorar no interior da pessoa, de modo que devemos agradecer à adversidade quando ela nos ajuda a reunir a energia ...