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Prof. Calvin S. Hall

Western Reserve University

Cleveland (Ohio)/EUA, 06 de outubro de 1954.

 

Dear Sir,

Agradeço a gentil oportunidade que me deu para eu tomar conhecimento da psicologia de um psicólogo americano. Fiquei muito animado pelo fato de o senhor ter irado algo de positivo de meu trabalho incompetente e estou agradecido 1) por sua disposição em ouvir minhas impressões, 2) pela honestidade e sinceridade de sua intenção e 3) por sua tentativa séria de ser imparcial e deixar de lado os seus preconceitos.

Mas o senhor me deixou um problema difícil de me desvencilhar. Em primeiro lugar, não consigo entender a sua maneira típica de apresentar minha obra. Para ser bem claro, usarei o seguinte exemplo:

Alguém se propõe a apresentar a obra de Mr. Evans a um auditório ignorante em Creta. Para isso fala quase exclusivamente das conjeturas de Evans sobre a história e cultura minoicas. Mas por que não menciona o que ele escavou em Cnossos? Sua conjeturas são irrelevantes em comparação com os fatos e os resultados de suas escavações; e pelo fato de seus ouvintes ignorarem seu mérito principal, não estão preparados para entender o que ele pretende com suas conjunturas.

Dessa forma, a gente lida sobretudo com palavras e nomes, em vez de abordar o substancial. Eu tenho uma postura totalmente empírica, por isso não tenho sistema algum. Tento descrever os fatos dos quais o senhor menciona apenas os nomes. tive a estranha impressão de que, ao dizer que está me apresentando, o senhor se restringe às minhas roupagens externas, o que para mim é indiferente e com certeza não é essencial.

Nunca afirmei, por exemplo, conhecer perfeitamente a natureza dos arquétipos, como se formaram ou se é que se formaram, se foram herdados ou se foram implantados sempre de novo em cada pessoa pela graça de Deus. O senhor afirma inclusive o superado sofisma da não-hereditariedade de qualidades adquiridas. O que dizer da mutação que se mantém nas gerações subsequentes? O que dizer das coisas estranhas que se podem ver nas ilhas Galápagos? (1) Se nenhuma mudança é herdada, então nada muda a não ser por uma infinita série de atos criadores. Mas eu insisto, como o senhor pode facilmente ver, sobre tais sofisticações. A sua insistência em conjeturas tao irrelevantes talvez esteja ligada a outro problema que gostaria de esclarecer por outro exemplo:

Alguém tenta apresentar a obra filosófica de Platão. Nós europeus esperamos que este alguém, para realizar o seu intento, leia todos os escritos de Platão e não apenas a metade ou os primeiros deles. Semelhante procedere não qualifica ninguém e não pode ser chamado de responsável ou confiável. Isto não se recomenda nem mesmo com referência a um autor tão insignificante quanto eu.

O último e maior problema é o notável preconceito que me traz à lembrança a opinião muito difundida de que um psiquiatra deve ser louvo porque lida com doentes mentais. Se o senhor me chama de ocultista porque estou pesquisando seriamente fantasias religiosas, mitológicas, folclóricas e filosóficas em pessoas atuais e em textos antigos, então o senhor deve diagnosticar Freud como um pervertido sexual porque ele está fazendo o mesmo com fantasias sexuais, e um criminologista com interesses psicológicos deve estar maduro para a forca. Exemplo típico de meu recente trabalho é Psicologia e alquimia.

Não é responsabilidade minha que a alquimia seja oculta e mística; também não tenho culpa das delusões místicas dos doentes mentais, nem das crenças peculiares da humanidade. Talvez o senhor tenha percebido que eu sigo o conhecido método da anatomia comparada ou da história comparada das religiões ou aquele de decifrar textos antigos difíceis, como se pode ver facilmente em Psicologia e alquimia. Tratando de tais fantasias, tenho de aduzir material análogo, encontrado em textos místicos ou nos mitos e nas religiões. Ou o senhor acredita que os psicopatas não têm fantasias dessa espécie? Veja, por favor, o meu livro Símbolos da transformação.

Não consigo entender por que o estudo das fantasias sexuais seria mais objetivo e científico do que o estudo de outra espécie de fantasia como, por exemplo, a religiosa. Mas parece obvio que as fantasias sexuais são verdadeiras e reais, ao passo que a fantasia religiosa não é verdadeira, é um erro e não deveria existir, e aquele que dela se ocupa é altamente não científico. Esta lógica ultrapassa o meu horizonte.

Na condição de médico e cidadão estou não apenas autorizado, mas moralmente obrigado a avisar e aconselhar quando eu o julgar necessário. Não sou propenso a pregar, mas sinto-me socialmente responsável e me decidi a não participar do arquipecado do intelectual, ou seja, da trahison des clercs (2), como um autor francês denomina esta forma peculiar de autoerotismo infantil. Esta é a razão por que me interesso pelo aspecto social da psicologia.

O que me surpreende é que quase nenhuma das críticas de minha obra mencione os fatos que estou produzindo. Geralmente os ignoram completamente. Mas gostaria de saber como vão explicar o impressionante paralelismo entre o simbolismo individual e histórico, que não pode ser atribuído à tradição. Este é o verdadeiro problema. Negar os fatos é simples e barato demais. Nunca convém subestimar novas ideais ou fatos novos.

Espero que não leve a mal que eu exponha minhas impressões sem rodeios gentis. O senhor pode rejeitá-las como irrelevantes, mas isto não seria benéfico para o progresso da ciência. Sempre me lembrarei do tempo em que Freud perturbou a soneca pacífica das Faculdades de medicina e da filosofia pelas suas descobertas chocantes, que agora são tomadas a sério. Certa vez um professor rejeitou minhas afirmações, dizendo: “Os seus argumentos se chocam com a doutrina da unidade da consciência. Por isso o senhor está errado”. Esta frase ficaria bem no século XIII, mas infelizmente foi dita no século XX.

Seguem em breve minhas observações ao seu datiloscrito.

Espero que minhas críticas não o tenham ofendido.

Yours respectfully, C. G. Jung

 

(1)As ilhas Galápagos (pertencentes ao Equador), no Pacífico, possuem uma fauna peculiar. Ela atraiu a atenção de Charles Darwin e lhe deu uma base para suas ideias sobre a seleção natural e evolução. Jung interessou-se especialmente pelo fato de uma espécie de insetos sem asas ter-se desenvolvido através da mutação, e que esta característica adquirida se tenha tornado hereditária. Cf. carta a Kristof, junho de 1956.

(2)Referência ao livro do filósofo francês Julien Benda, La Trahison des Clercs, Paris, 1927. Vai contra certo tipo de racismo e certa forma de ditadura, que causou grande celeuma na época.

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