Vancouver/British Columbia, 15 de fevereiro de 1955.
Dear Sir,
Muito obrigado por seu gentil convite de contribuir com um
ensaio para os seus estudos sobre a mescalina. Ainda que eu mesmo nunca tenha
experimentado a droga e nunca a tenha indicado para outra pessoa, dediquei ao
menos 40 anos de minha vida ao estudo dessa esfera psíquica que se desvenda
pelo uso dessa droga, isto é, a esfera da experiência numinosa. Trinta anos
atrás tomei conhecimento das experiências do Dr. Prinzhorn com mescalina (1), e
assim tive ampla oportunidade de aprender alguma coisa sobre os efeitos da
droga, bem como sobre a natureza do material psíquico envolvido no experimento.
Devo concordar com o senhor que o mencionado experimento é do
maior interesse psicológico do ponto de vista teórico. Mas quando se trata da
aplicação prática e mais ou menos geral da mescalina, tenho minhas dúvidas e
reticências. O método analítico da psicoterapia (por exemplo, a “imaginação
ativa”) chega a resultados bem semelhantes, ou seja, à plena conscientização
dos complexos, a sonhos e visões numinosos. Estes fenômenos ocorrem em seu
devido tempo e lugar durante o tratamento. A mescalina, porém, encobre esses
fatos psíquicos a qualquer tempo e lugar, quando e onde ainda não é certo que o
indivíduo esteja suficientemente maduro para integrá-los. A mescalina é uma
droga semelhante ao haxixe e ao ópio; trata-se de um veneno que paralisa a
função normal da apercepção e dá livre curso aos fatores psíquicos que estão à
base da percepção dos sentidos. Estes fatores estéticos correspondem às cores,
sons formas, associações e emoções atribuídos pela psique inconsciente ao
simples estímulo dado pelos objetos. Na filosofia hindu correspondem ao
conceito de “pensador” do pensamento, do “sentidor” do sentimento, do “soador”
do som, etc. é como se mescalina estivesse tirando a camada superior da
apercepção, que produz a imagem “exata” do objeto como ele nos aparece. Se esta
camada for removida, descobrimos imediatamente as variantes da percepção e
apercepção conscientes, isto é, uma rica escala de possíveis cores, formas,
associações, etc., das quais o processo de apercepção seleciona em condições
normais a qualidade correta. A percepção e a apercepção resultam de um
complicado processo que transforma o estímulo psíquico e fisiológico numa
imagem psíquica. Dessa maneira a psique inconsciente acrescenta cores, sons,
associações, significado, etc., que ela retira do tesouro de suas
possibilidades subliminares. Estes acréscimos, se incontrolados, se
dissolveriam na imagem objetiva ou a cobririam com uma variedade infinda, uma
verdadeira “fantasia” ou sinfonia de sombras e nuances, tanto de qualidades
como de significados. Mas o processo normal da percepção e apercepção
conscientes visa produzir uma representação “correta” do objeto, excluindo
todas as variantes subliminares da percepção. Se pudéssemos destampar a camada
inconsciente que está próxima à consciência durante o processo de apercepção,
estaríamos diante de um mundo em constante movimento e cheio de cores, sons, formas,
emoções, significados, etc. Mas fora disso tudo, emerge uma imagem
relativamente enfadonha e banal, sem emoção e pobre de sentido.
Descobrimos na psicoterapia e na psicopatologia as mesmas
variantes (normalmente, porém, numa disposição menos deslumbrante) através da
amplificação de certas imagens do inconsciente. A mescalina remove bruscamente
o véu do processo seletivo e revela a camada subjacente das variantes
perceptivas, aparentemente um mundo de riqueza sem fim. Assim o indivíduo obtém
uma visão completa das possibilidades psíquicas, que de outra maneira (por
exemplo, através da “imaginação ativa”) só conseguiria por meio de trabalho
assíduo e treinamento relativamente longo e penoso. Mas se conseguir isto,
então a experiência é legítima e ele conquistou também a atitude mental que o
torna capaz de integrar o sentido de sua experiência. A mescalina é um atalho
e, por isso, tem como resultado apenas uma impressão estética, talvez impressionante,
mas que permanece isolada, sendo uma experiência não integrada e pouco
contribuindo para o desenvolvimento da personalidade humana.
Vi no Novo México alguns peiotes que não tinham semelhança positiva
com os índios Pueblo comuns. Pareciam dependentes de drogas. Talvez fosse
interessante examiná-los do ponto de vista psiquiátrico.
É absurda a ideia de que a mescalina possa provocar uma experiência
transcendental. A droga apenas revela a camada funcional normalmente
inconsciente das variantes perceptivas e emocionais; estas são apenas
psicologicamente transcendentes, mas de forma nenhuma “transcendentais”, isto
é, metafísicas. Este experimento pode ajudar na prática as pessoas que desejam
uma boa ideia de sua realidade. Mas nunca pude aceitar a mescalina como meio de
convencer as pessoas da possibilidade de uma experiência espiritual para
superar o seu materialismo. Ao contrário, é uma excelente demonstração do
materialismo marxista: a mescalina é a droga pela qual se pode manipular o cérebro
de forma que produza experiências até mesmo chamadas “espirituais”. É o caso
ideal para a filosofia bolchevique e seu “brave new world”. Se isto for tudo o
que o Ocidente tem para oferecer em termos de experiência “transcendental”, só
confirmaria a aspiração marxista de provar que a experiência “espiritual” pode
ser provocada também por meios químicos. (...) (2).
Finalmente há uma questão que sou incapaz de responder por não
ter experiência correspondente: refere-se à possibilidade de uma droga que abre
a porta para o inconsciente poder também deslanchar uma psicose latente e potencial.
Segundo minha experiência, essas disposições latentes são mais frequentes do
que as psicoses agudas, e existe então uma boa possibilidade de topar com um
caso desses durante a experiência com mescalina. Seria uma experiência muito
interessante mas também desagradável que tais casos fossem o espantalho da
psicoterapia.
Espero que a franqueza de minha opinião crítica não o tenha
ofendido.
I remain, dear Sir,
Yours very truly, C. G. Jung.
(1)Dr. Hans Prinzhorn, 1866-1933), psiquiatra por seu livro
Bildnerei der Gesiteskranken, Berlim, 1922.
(2)Nas frases omitidas, Jung repete o que havia dito antes.
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