A Pater Lucas Mensa, OSB
Abadia Ettal, Oberbayern/Alemanha, 28 de
março de 1955.
Prezado Pater Lucas,
Muito obrigado por sua carta amiga e
esclarecedora. Ela me proporcionou uma valiosa oportunidade de aprender algo
sobre o processo de tornar-se total (inteiro) e santo. No caminho retroativo da
história da humanidade (1), é possível integrar muita coisa, que também
pertence a nós e, mais abaixo, inclusive algo do irmão animal que é mais
piedoso do que o ser humano, porque ele não pode fugir da vontade divina nele
implantada, uma vez que sua consciência obscura não lhe aponta outros caminhos.
Neste caminho – não importa onde tenha começado, contanto que seja trilhado com
seriedade – caímos no fogo ou, como diz o ditado, chegamos à proximidade dele:
“Quem está perto de mim está perto do fogo e quem está longe de mim está longe
do reino” (2).
A “domesticação da besta”, como diz o
senhor, é na verdade um longo processo que coincide com a dissolução do
egotismo. O que o senhor chama de “dessimemização” eu o chamo de “tornar-se em
si-mesmo”, pois aquilo que parecia até agora “eu” é assumido numa dimensão
maior que me excede e circunda por todos os lados e que não posso conceber em
sua totalidade. Neste contexto o senhor cita corretamente, como eu, Paulo, que
expressa a mesma experiência (3).
Por um lado, esta experiência é um
carisma, por nisi Deo concedente, não a podemos fazer. Queimaremos no
fogo até às cinzas. Por outro lado, ela só acontece se nós renunciarmos ao eu
como suprema instância e nos colocarmos inteiramente sob a vontade de Deus.
O senhor mesmo acha necessária uma
definição do conceito de “perfeição”. O senhor a explica como “pleno
desenvolvimento da natureza no plano da santidade, mediante a doação de Deus”.
Sendo Deus a própria totalidade, sendo ele “inteiro” (= total) e “santo” em si,
a pessoa humana só alcança sua totalidade em Deus, isto é, só alcança a
plenitude de seu si-mesmo através da submissão à vontade de Deus. Uma vez que o
ser humano, no estado de sua “inteireza” e de seu “ser santo”, está longe de
qualquer perfeição, a palavra teleioz do Novo Testamento
deve ser traduzida como “completo” (4). O estado humano de totalidade é para
mim uma “integridade ou completitude” e não “perfeição”, cuja expressão eu
evito, bem como “santidade”.
O senhor descreve o eu (após a
“domesticação” da “besta”) como “na completa posse de si mesmo”. Eu diria aqui
que a resistência da profundeza da alma cessa quando nós podemos renunciar à
nossa egocidade, e o si-mesmo (consciência + inconsciente) nos recebe em sua
dimensão maior, onde somos então “todo” e, devido à nossa relativa totalidade,
estamos na proximidade do verdadeiro todo, isto é, da divindade. (Discussões a
este respeito o senhor as encontrará no capítulo IV e V de Aion (5).
Diria de preferência então que Deus está na “completa posse do eu e de meu
si-mesmo”, e não acentuaria a força do eu.
Não sei se é lícito refletir sobre
assuntos divinos em nosso estado de impotência. Eu acho que todos os meus
pensamentos giram em torno de Deus, como os planetas em redor do Sol e por ele
são atraídos irresistivelmente. Eu o sentiria como o mais hediondo dos pecados
se tivesse que opor resistência a esta força. Sinto que é vontade de Deus que
eu empregue o dom do pensamento que me foi concedido. Coloco por isso meu
pensamento a seu serviço e entro, por meio dele, em conflito com a doutrina
tradicional, sobretudo com a doutrina da privatio boni. Perguntei em vão
a vários teólogos qual é na verdade a relação de Javé com o Deus dos cristãos,
pois aquele, sendo um guardião da justiça e da moralidade, é ele mesmo injusto
(ver Jó 16.19s). E como fica este paradoxo em vista do “summum bonum”? Segundo
Isaías 48.10s, Javé atormenta os homens (excoxi te) por causa dele
mesmo? “Propter me, propter me faciam” (6).
Isso é compreensível em termos de sua
natureza paradoxal, mas não em termos do summum bonum que, por
definição, já contém todo o necessário para sua perfeição. Por isso ele também
não precisa das pessoas, ao contrário de Javé. Tenho de questionar a doutrina
do summum bonum na medida em que o mh on do mal tira deste
qualquer substancia e só deixa o bem, ou simplesmente nada, o qual, sendo nada,
também nada produz, isto é, não pode causar o mínimo impulso mau. E, como não é
nada, também não pode provir do ser humano. Além disso, o demônio existiu
antes do homem, e certamente não foi bom. Mas o demônio não é nada.
Portanto, o posto do bem não é nada, mas sim um mal igualmente real.
O profundo da psique, o inconsciente, não
foi criado pelo homem, mas é natureza criada por Deus. Não deve ser insultado
pelo homem, mesmo que lhe traga as maiores dificuldades. Seu fogo, que nos
“cozinha na fornalha da aflição”, é segundo Isaías 48.10 a vontade do próprio
Deus, isto é, a vontade do próprio Javé que precisa do ser humano. A
inteligência e a vontade humana são requisitadas e podem ajudar, mas nunca
podem pretender ter pesquisado a profundeza do espírito e ter apagado o fogo
vinculado a ele. Só podemos confiar na graça divina, e que Ele não nos obrigue
a descer ainda mais e nos deixe queimar por seu fogo.
O senhor evidentemente ofereceu-lhe
sacrifícios a bastar, suportando seu fogo até que seu egotismo estivesse
suficientemente abafado. Na verdade, seu eu não está na posse de seu si-mesmo,
mas foi reduzido praticamente a cinzas, de modo que o senhor tornou-se capaz de
um amor abnegado. O senhor poderia alegrar-se com isso, se sua “alegria” não
entrasse em oposição direta co0m o sofrimento do mundo e de seus concidadãos. O
próprio Salvador não demonstrou nenhuma alegria na cruz, ainda que pudéssemos
atribuir-lhe a total dominação do mundo e de si mesmo. Um “objeto” (como o
senhor escreve), isto é, um ser humano, que não sabe que acendeu amor no
senhor, não se sente amado, mas humilhado, pois é simplesmente submetido ou
exposto ao estado psíquico do senhor, do qual ele não tem nenhuma participação.
Tal modo de ser amado me deixaria frio. Mas o senhor mesmo diz que, na medida
em que a gente é o que é, também é outro. Então será afetado também pelo
sofrimento dele e verá diminuída a alegria do senhor. Mas quando o senhor
escreve que “não precisa mais da criação”, dá a entender ao seu coirmão (que
também pertence à criação) que ele lhe é supérfluo, mesmo que “aclame o Senhor
através dele”.
Quem superou alguma coisa e dela se livrou
cabe-lhe, na mesma medida, a tarefa de carregar o fardo dos outros. Na maioria
dos casos, eles são tão pesados que desaparecem os gritos de alegria. Já é
motivo de alegria se puderem respirar de tempos em tempos.
Posso acompanhá-lo em seu processo de
“tornar-se inteiro”, mas não posso acompanhá-lo em suas afirmações com relação
ao “eu em completa posse de si mesmo” e ao amor que tudo reveste, ainda que com
isso o senhor se aproxime perigosamente do ideal da ioga, ou de seu
“nirdvandva” (livre dos opostos). Sei que no decurso dos processos cintilam
semelhantes momentos de libertação. Mas eu os temo, pois sinto em tal momento
que sacudi o fardo de ser humano e que ele voltará a mim com peso dobrado.
O senhor não precisa mudar o seu ponto de
vista para chegar ao conhecimento dos arquétipos. O senhor já o tem, mesmo que
possua a mesma posição do padre confessor que, procurado por um estudante de
psicologia, deu-lhe este conselho: “Não estudo nada que o intranquilize”.
Como não chegamos ainda à eterna
bem-aventurança, pendemos da cruz entre subida e descida, não só por amor a
nós, mas por amor a Deus e à humanidade.
Com saudações cordiais, C. G. Jung.
(1)Segundo padre Menz, o processo de
santificação é um caminho através de toda a humanidade, começando com Adão.
(2) Cf. carta a Corti, de 30 de abril de
1929, nota 5.
(3) O padre Menz cita em sua carta Atos
dos Apóstolos 17.28: “É nele que vivemos, nos movemos e existimos”.
(4) Cf., por exemplo, Mateus 19.21: “Jesus
respondeu: Se queres ser perfeito, (teleios einei) vai, vende o que
tens...” Cf. Psicologia e Alquimia, § 208: “A vida em sua plenitude não precisa
ser perfeita, e sim completa”. Cf. também Aion, Vol. 9/2, § 123 e 333.
(5) Trata-se dos capítulos “O si-mesmo” e
“Cristo, símbolo do si-mesmo”.
(6) Isaías 48.10: “Vê, eu te purifiquei,
mas não como a prata; provei-te na fornalha da aflição. Por amor de mim, por
amor de mim faço isto...”.
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