Basileia, 9 de novembro de 1955
Prezado Colega,
Com muito atraso, finalmente agradeço sua gentil carta de parabéns
pelo meu 80º aniversário. Fiquei muito surpreso por você ter se lembrado de mim
e até mesmo ter se dado ao trabalho de lembrar com boa vontade a existência da
minha sombra. Você pode balançar a cabeça incrédulo quando eu lhe disser que eu
dificilmente teria sido capaz de formar o conceito de sombra se sua existência
não tivesse se tornado uma das minhas maiores experiências, não apenas em
relação a outras pessoas, mas também em relação a mim mesmo. Portanto, aceito
de bom grado suas alusões ao Voltaire de Houdon (1) e a “Jó”, embora seja como vender
sorvete a esquimó. Gosto de olhar para o semblante zombeteiro do velho cínico,
que me lembra da futilidade das minhas aspirações idealistas, da dubiedade de
minha moral, da baixeza dos meus motivos, do humano – ai de mim! – tão humano.
É por isso que o Sr. Arouet de Voltaire ainda está na sala de espera, para que
meus pacientes não se deixem enganar pelo amável doutor. Minha sombra é tão
grande que eu não poderia ignorá-la no planejamento da minha vida; na verdade,
tive que vê-la como parte essencial da minha personalidade, aceitar as
consequências dessa constatação e assumir a responsabilidade por elas. Muitas
experiências amargas me obrigaram a perceber que, embora o pecado que alguém
cometeu ou está cometendo possa ser lamentado, ele não é apagado. Não acredito
no tigre que se converteu ao vegetarianismo e passou a comer apenas maçãs. Meu
consolo sempre foi Paulo, que não considerou indigno admitir que carregava um
espinho na carne.
Meu pecado se tornou minha tarefa mais preciosa. Eu jamais o
deixaria nas mãos de outra pessoa para parecer um santo aos meus próprios
olhos, sempre sabendo o que é bom para os outros.
As críticas e a “compreensão” que tive de suportar nas mãos
de teólogos (muito antes de Jó!) não me dão motivo para tratar seus conceitos
teológicos com mais delicadeza do que eles trataram os meus.
O mesmo se aplica aos freudianos. (2)
Quanto à “dialética” de Trüb (3) (que, se é que era isso
mesmo, exigiria um parceiro), consistia em um monólogo no qual eu não conseguia
falar. Apesar dos esforços honestos de minha esposa e meus, até mesmo provas
documentadas foram varridas para debaixo da mesa sem sequer um olhar. Seu
método era muito parecido com o de um teólogo, assim como seu grande equívoco.
O protestantismo se depara com questões que um dia terão que
ser ditas abertamente. Por exemplo, o horrível sofisma da privatio bani, que
até mesmo teólogos protestantes estão dispostos a endossar. Ou a questão da
relação entre o Deus do Antigo e do Novo Testamento, que eu submeti a quatro professores
acadêmicos. Dois nem sequer me responderam. Um deles admitiu que nos últimos
vinte anos não se falou mais de Deus na literatura protestante. O quarto achou
que a questão tinha resposta fácil, isto é, que o Deus do AT era uma representação
algo arcaica diante do Deus do NT, sem perceber que com esta resposta ele
incorria exatamente naquele psicologismo de que me acusa a teologia. Quando
lhes convém, Deus é apenas uma ideia antropomórfica, ou eles fingem que podem
evocar o próprio Deus nomeando-o. Mas quando considero uma imagem
antropomórfica de Deus passível de crítica, então é “psicologismo” ou - pior
ainda – “blasfêmia”! Os leigos de hoje não se deixam mais enganar por esse tipo
de charlatanismo, e o protestantismo faria bem em perceber que alguém está
batendo à porta. Bati longa e ruidosamente para despertar a teologia
protestante de seu sono prematuro, pois me sinto responsável como um “protestante”.
Transmiti minha mensagem da forma mais clara possível, juntamente com as provas
relevantes. Se o teólogo, como Trüb, optar por ignorá-la, isso é problema dele.
Não preciso dizer a vocês o quão problemático é esse espetáculo.
O protestantismo há muito deixou de viver seu “protesto”. Ele
extrai sua vitalidade de seu encontro com o espírito da época, da qual a
psicologia agora faz parte. Se falhar nessa tarefa, ela definha. Na verdade, os
teólogos deveriam me ser gratos pelo intenso interesse que demonstro por eles,
e, de fato, alguns poucos o são.
A extensão da minha resposta será suficiente para mostrar que
seus esforços educativos foram recompensados. Portanto, permito-me esperar que
você levante essa questão da sombra entre seus amigos e camaradas, os teólogos
e freudianos.
Com cordiais saudações,
Atenciosamente, C. G. Jung
1 Jung mantinha uma reprodução do busto de Voltaire, de
Jean-Antoine Houdon (1741-1828), em sua sala de espera em Küsnacht. O Dr. Bovet
havia dito o quanto se sentira perturbado pelo contraste entre o busto, “que o
recebe com seu sorriso cínico e superior”, e “o médico benevolente e
calorosamente humano”, como se este último tivesse “deixado sua sombra na sala
de espera”.
2 Dr. Bovet expressou dúvidas sobre a maneira como Jung
criticava tanto os teólogos quanto os freudianos.
3 O médico suíço Hans Trüb, originalmente amigo e seguidor de
Jung, considerou o conceito de individuação de Jung como sendo “um fim em si
mesmo” demais, e isso levou a um crescente afastamento. Cf. seu Vom Selbst
zur Welt ( 1947) e Heilung aus der Begegnung (1951).
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